domingo, 25 de setembro de 2016

Ao ler um nome no programa de um seminário sobre poesia contemporânea, sobrevém-me a consciência, com um peso de quase facto, de que a existência da minha obra, se a tiver, será póstuma. A culpa, se de culpa se pode falar, é total e fatalmente minha porque nunca me fiz à via-sacra da publicação. (...)

Posso também perguntar o que é isso da minha obra – o amontoado de rascunhos de poemas, a massa de escritos autobiográficos, as reflexões pela rama de autores e livros?  Só por especial favor ou com especial condescendência se pode falar de uma obra. Mas, por uma questão de simplicidade metodológica, aceite-se que de uma obra se trata: mesmo que nunca venha a ter existência póstuma, entendendo-se aqui existência por letra de forma e chancela de editor, possui o seu próprio espaço, cria-o. Ninguém a lê, ninguém sabe que ela existe, mas isso não impede nem anula a sua existência, na medida em que é, não o reflexo da consciência de algumas coisas, mas uma existência que cria e, ao mesmo tempo, é essa própria consciência. Não se lhe pode, por isto, dar especial importância, só porque é uma consciência exponencial, quase se diria exacerbada, da linguagem e do mundo derivada da consciência de um homem, mas o que não se lhe pode negar é existência. Existe talvez num grau menor, a um nível de exposição quase nulo, com um raio de comunicação igualmente quase nulo, e irá extinguir-se com todas as outras que gozam da máxima exposição e são capazes de uma comunicação de longo alcance. Não é uma tentativa de auto-consolação – dificilmente a ideia de extinção total de tudo, com o nosso sol a abater-se sobre si próprio, me serve de consolação. Mas, para levar a  minha lógica até às últimas consequências, talvez as consciências e os espaços delas que são todas as obras fiquem a pairar no éter, entrem em órbita ou, furtando-se às leis do Universo, voguem até aos confins dele...

Nuno Rocha Morais

(Por isso, filho, dou-te a palavra em todo o espaço que puder)

domingo, 18 de setembro de 2016

 Quando parti, a minha mãe não me deu,
Como a mãe de d’Artagnan, esse unguento milagroso,
O bálsamo talvez levemente fétido,
Certamente inútil,
Produto de uma sabedoria
Que ganhou o ranço da ingenuidade.
Como d’Artagnan logo percebeu
Havia dores, feridas, que o bálsamo
Não podia compreender, muito menos mitigar.
O bálsamo que a minha mãe me deu
Vinha dentro de mim,
Esse que, em voz aflautada pela ironia,
Se designa por amor de mãe,
E a sua pureza muito podia
Contra os inúmeros Rocheforts do mundo.

Nuno Rocha Morais

domingo, 4 de setembro de 2016


A tabacaria onde, anos a fio,
Comprei jornais fechou,
Por extrema unção, os vidros
Foram revestidos com folhas
De jornais antigos, mumificando
A velha tabacaria.
E fechou também a pastelaria
Que deixei de frequentar
E obscuramente entendo
Que, doravante e por uns tempos,
Todo o açúcar me pareça sórdido
E guarde um gosto de remorso.
Os hábitos não custam a deslaçar,
Parece quase indolor que sejam
Substituídos por outros
Ou que se ambientem noutros espaços.
Hoje comprei jornais noutro lado
E, transversalmente, ocorre-me
Que todas as religiões estavam certas
E, que a luminescência de um sorriso
É comungada por todos os deuses
Em todas as aras e nos núcleos
De todas as crenças.
A imortalidade cumpriu-se
Em plástico, mercúrio, pesticidas.

  Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...