quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Programa



Escrevo contra tudo e contra todos,
Sou contra o sal e contra o mel
E persigo-os,
Persigo lugares para subir
E infernos para descer,
Escrevo contra a altura e a profundidade.
Escrevo contra quem me lê,
Escrevo contra o que escrevo,
Escrevo contra a lucidez,
Escrevo de pulso soltos
E sou contra os meus pulsos soltos.
Escrevo pelo bem contra o bem,
Escrevo o mal contra o mal,
Escrevo contra o que escrevo,
Escrevo pela poesia
Escrevo contra mim e contra as palavras.

Nuno Rocha Morais



*(Nuno nasceu a 31/12 e hoje mais do que nunca sinto a sua falta)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Eis as temerosas casas
Perífrases de estradas
Rumos infernais que a nada levam
Foram vencidos para aqui se chegar
Aqui brincamos às escondidas
Buscaríamos já lugar seguro
Para ocultarmos a infância
Das eclipses do tempo?
E aqui a broa o gado o leite
As primeiras raparigas
A memória e sobretudo a infância
O adro da igreja os cães a urze
As uvas vindimas desfolhadas
Nozes varejadas o mata
As correrias as bicicletas
Os primos e tios
Naquela aldeia – era estranho
Que ela fosse o museu da infância

Nuno Rocha Morais

sábado, 19 de dezembro de 2015


O Inverno vai ser cruel e tu tens razão.
Fiquei até ao fim, quando já não me querias
Não te abandonei quando me abandonaste
E agora não me posso defender,
Não posso dizer uma palavra.
Perdi os amigos, perdi o espírito,
Vendi a minha alma a um demónio de passagem
Para poder ficar ao teu lado,
Para te continuar a seguir,
Mas foste tu que partiste, e assim me querias,
Desprendido e distante.
Mas, mesmo o abismo não basta
Para me separar de ti,
Nem sequer este dentro de mim.
Esqueces já tudo, até encontros futuros
Marcados talvez por dias que perdemos
É por isso que um bebé não dorme no meu colo,
Perturbado pela minha escuridão.
Sim, sou um cobarde, o dia é irreversível,
Perdoa-me porque, afinal,
Também eu sou humano,
Também eu não vim para ficar
Em nada, em vida nenhuma,
Salvo talvez como fóssil.
Creio que, no fim de tudo,
Não me serão perdoados
Os crimes que cometeram contra mim.

      Nuno Rocha Morais

domingo, 13 de dezembro de 2015


Biografia

Sou treva
E não sei ser dia,
Sou distância
E não sei ser estrada,
Sou grafia
E não sei ter sentido.

 Nuno Rocha Morais

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Sei de alguém aí,
Saber ténue, ensombrado
Por opaca ignorância, imensa.
Sei uma face – qual? –
Do outro lado da palavra,
No outro pólo do silêncio.
Entre nós, a navegação da página.
Quem és? Quanto porás de ti
Na arquitectura deste verso?
Como povoarás as suas clareiras de sombra?
Quanto de ti fossilizado neste verso?
Que relevo na tua alma?
Nada me dirás, eu que para ti
Também não tenho rosto,
Distante, maquinal, extremo.
Nada me dirás, a mim
Que concentrei esta palavra
Sonhando-te.

Nuno Rocha Morais

domingo, 29 de novembro de 2015

 Atravessei a sucessão de cavernas
E eram as conchas das suas mãos.
Não sabia que a escuridão
Denunciava o seu desvelo.
Ignorei o carpir das pedras,
Saí indemne para a luz
Ignorando que a sua alegria
Me recebia, radiosa;
Apenas sentia, obscuramente,
Que todos os perigos eram meus aliados,
Que todos os alarmes me eram fiéis;
Elas intercediam, secretas e fui hóspede
Das malas-artes da fadiga extrema
E o vinagre bastou para me matar a sede.
Eu sabia, de ciência cega,
Que a força das mães me erguia
Para o alto, para o humano,
Sem incomodar os anjos.

Nuno Rocha Morais

domingo, 22 de novembro de 2015

O cerimonial da manhã,
O mundo que invade
A noite da casa,
Compondo-se, traço a traço:
O cheiro do café,
O cheiro aveludado da fruta
Quando se entra na sala,
Cheiro macio como se pele,
A luz que se vai rasgando
E quanto mais se rasga,
Mais se tece,
Os pássaros pelas pautas da manhã –
O mundo num incêndio de ritos.
No entanto, eu espero outro mundo,
Um mundo perdido, submerso
Na ausência dessa mulher
Que jamais poderia ter ficado aqui.
Mas eu espero-a,
Faço do silêncio uma profecia,
Uma curva pela qual ela virá,
Uma maré que atravessou luas
E, onda a onda, aporta na praia.

Nuno Rocha Morais

domingo, 15 de novembro de 2015

FALA DE JASÃO A MEDEIA


“— Já nenhuma razão te assiste, ó vil
Assassina da tua própria carne.
Os deuses que te deram a beber
A sede da vingança não te ajudam:
Guiam agora o gume desta espada,
Cujo fio é justiça infalível.
Não te temo, ó mal livre e desgrenhado
Feiticeira da sombra e da serpente,
Pois quanta dor podias dar já deste.
Toda a morte possível devorou
A fonte já esgotada do meu peito.
Não te dará o medo mais poder,
Nem poderá abafar todo o meu ódio.
Subirei os degraus como a maré
Certa do seu destino e morrerás,
Medeia, e guarda algum te salvará…
Amei-te, mas o amor é como as dunas
E, lentamente, cede à mão do vento,
Vendo-se outros cabelos, outras mãos;
Amei-te, mas é breve a travessia
Desde a luz do amor ao carvão do ódio.
Sim, morrerás, Medeia, morrerás
E não terás descanso sepulcral,
Nem sequer na raiz do esquecimento.
O teu nome há-de ser todo o veneno
Que tão odiadas faz as vis serpentes”.
     
     Nuno Rocha Morais

domingo, 1 de novembro de 2015

Resposta a um certo Kaspar Hansa


As tentações que ofereço são risíveis,
Não sei corromper, sendo eu tão corruptível
Pela minha credulidade consciente.
Não sei ser de outro modo:
Já me chamaram bom,
Mas creio que isso é um equivoco
Tão grande, tão grande
Como me julgarem dissimulado,
Maléfico, inofensivo.
Todos são, em algum momento,
Eleitos, chamados,
Mas só o inevitável me elege.
Sou um homenzinho de gostos simples,
As horas do dia que prefiro
São a manhã, a tarde e a noite.
Tenho o coração tão vazio
Que nele não me cabe sequer
O sopro de uma desilusão.

Nuno Rocha Morais

sábado, 24 de outubro de 2015



Embora me quisesse prender a outros dias,
Nunca sair de lá, Houdini ao contrário –
Ficar é bem mais difícil
Do que conseguir sair.
Se virem a minha amiga Joana,
Digam-lhe, digam-lhe só, sei lá,
E se a virem, ela, bem colocada
Na literatura brasileira, interceda por mim
E peça, lá no empíreo, perdão a Vinícius
Pela barata imitação.
Se virem a minha amiga Joana,
Digam-lhe que na minha alma entraram
Muitos funerais, mas não falo da morte
E lhe ofereço um ramo de saudades,
Flores um tanto escuras;
Se virem a minha amiga Joana,
Digam-lhe que lhe sinto a falta
Digam-lhe que lamento, mas entendo e não entendo.
Se a virem, digam-lhe que me faz falta, enfim,
Um pouco da sua alma
E que não sou justo com outros amigos meus
Por lhe sentir a falta assim.
Se virem a minha amiga Joana,
Digam-lhe que isto vai, um dia de cada vez,
Às vezes mais, mas só por engano.
   
Nuno Rocha Morais

sábado, 17 de outubro de 2015


Retorno aos teus braços,
Relembro a presença da luz.
Apago as guitarras chorosas
Que o dia fez desaguar em mim,
Esqueço as fendas de viver a morte
Por onde me vou esvaindo,
A presença cada vez mais silêncio.
Retornei, vesti outra vez aqueles velhos hábitos,
Habito de novo aqueles olhos felizes.
Sem estrelas, sim, mas com sonhos.
Regressei à minha infância de sempre,
A infância de onde nunca parti,
Mas que partiu de mim (parece que isso se chama crescer)
E depois tive que assinar cada dia
Com uma gota de sangue,
Mas agora voltei e adormeço no teu nome:
Mãe.

           Nuno Rocha Morais

domingo, 4 de outubro de 2015












Aquelas luzes todas,
Aquele movimento confuso, larvar,
Aquelas paredes onde se encerra
Uma incerta meia-dúzia,
Ocupada com os seus instrumentos de precisão
Para a omnipresença e a omnisciência,
Aquela cidade justa é a humanidade.
À volta das paredes, não menos humanos
São os milhões de ilhas
Formadas por pessoas que se agarram
Enquanto morrem
Abandonam-se entre si,
São indiferentes a toda a indiferença
Que os rodeia, os das ilhas
E os da cidade.
Preferem a companhia das baratas,
O amor dos escorpiões,
A confiança devotada por serpentes.

     Nuno Rocha Morais

     

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Não rasgo nada,
Bilhetes, cartas, fotografias,
Não queimo sequer
A memória dos teus olhos,
Não retribuo a dor
Que geraste –
A crueldade não te pertence,
É a de um amor
Que ficou para assistir
Ao seu próprio fim.



       Nuno Rocha Morais 

domingo, 20 de setembro de 2015

Compêndio

Ao fim e ao cabo, é suposto ser esta
A grande lição da vida,
Segundo a qual, ferozmente civilizados,
Nos devoramos e esfacelamos
E dos nossos restos
Fazemos a vida toda.
Cada vez menores,
Vemos cada vez maior o passado,
Um fio ténue de presente
E o ocaso alberga todo o futuro,
Mais e mais difusa
A possibilidade de todas as manhãs
De todos os caminhos por haver.
Só o amor unificaria os nossos restos,
Erguendo-os em uníssono,
Só o amor nos salvaria, só o amor.
E, contudo, já não restam neste mundo
Pasárgadas por onde possamos ir embora,
Onde sejamos amigos dos reis,
Onde tenhamos a mulher que queremos.
Só o amor, de céu muito azul
Ou nublado, só o amor
Nos salvaria neste grande suicídio –
A lição da vida.

        Nuno Rocha Morais



sábado, 12 de setembro de 2015


Trago a cabeça cheia de códigos,
Trago outros em cartões.  
São os odores, os toques de antenas,
As secreções por que o sistema,
A grande mãe cega, me reconhece.
O meu nome pouco interessa
Ou os carreiros que sigo,
Onde é a minha toca ou formigueiro.
Estes números são os poros
Por que respiro, o sinal
Que me torna visível no sonar,
Que me abre portas que desembocam
Noutras portas e estas desemportam
Noutras bocas.
Não estamos tão longe de insectos pitagóricos,
Tão longe de demonstrar a existência de Deus.

              Nuno Rocha Morais


sábado, 5 de setembro de 2015

ESTUDO Nº3 (F. CHOPIN)






















As palavras pesam demasiado
Tudo quanto dizem,
Mas esta melodia sente
Sem precisar de dizer.
Sente o teu nome que é quanto eu quero dizer.
O teu nome parece desabrochar
Nesta melodia,
Abrir-se numa ave —
Os dedos sobre o piano,
Imponderáveis e seguros.
O teu nome evanescente
Insinua-se no piano,
Na doçura plangente da melodia
Trespassa-me com os ramos de uma paz.
O teu nome é piano, melodia
E da melodia o teu vulto de langor levanta-se,
Como deusa que nascesse das águas.

         Nuno Rocha Morais


                 



sábado, 29 de agosto de 2015

Cronologia fechada,
O formato do costume, sem eufemismo –
Um nome e as duas datas fatídicas,
Uma quase tão terrível como a outra,
E o frio cavado entre elas –
O formato de uma vida.
Parecem tão próximas
As duas cabeças do tempo,
Cúmplices omniscientes que se fitam,
Sem uma palavra sobre a sua maquinação,
Nada, nem o vagido da primeira
Nem o estertor da última hora,
Nenhum sinal, nenhuma linha,
Nenhuma espuma de ausência
Euforia, desespero, alegria.
Nenhuma ruína de suor,
Enzimas, fluidos, sucos
E, se entre as duas datas, houve amor
Morreu com a sua imortalidade
Ou mudou-se para outras esferas.
Só o ressumbro do vazio.
Entre as duas datas, tudo subsumido,
Isto é, asfixiado, devorado, perdido.
Entre as duas margens, um deserto,
A calcinação resignada,
A submissa e total ausência de verbos
De que nascem vozes, nomes, corpos, dias.
Tudo se confina a isto, a este punhado de caracteres,
Um nome e duas datas, entre as quais
Tudo aconteceu, ou nada,
E tudo dorme, tudo jaz, ou nada,
Num golfo seco, reduzido a um traço, sem mais.
As incógnitas cansaram-se de brincar às equações
E aqui está a demonstração algébrica
Em que a vida confirma o que sempre suspeitamos
E por fim se confessa instante.

Nuno Rocha Morais





domingo, 23 de agosto de 2015



Morreremos um dia,
Consequência natural da acumulação
De mortes que atravessamos.
Sabemos isto, até quando o esquecemos,
Sabemos que a nossa morte
É a promessa de que outros vivos virão.
Mas tudo acabará, se se consumir o espaço
Em que todas as vidas
E todas as mortes se completam.

       Nuno Rocha Morais



sábado, 15 de agosto de 2015

Politicamente correctos


Entre dois fogos, estes salvam-se sempre:
São os devotos de uma viscosa equidistância
E  nas entranhas têm apenas uma falsa temperança.
Aí estão, constituídos árbitros de tudo,
Pairando acima de erros e paixões
À força de sangue frio e fogo lento,
Em nada diferindo dos abutres,
Salvo na máscara que usam.
Estes são os que esperam, assépticos,
Estando ao mesmo tempo com a maioria e nas minorias.
Compreendem tudo sem jamais incorrerem em nada.
E como praticam a arte da meia-verdade
Isenta da meia-mentira inerente.
São estes que tentam mediar o fogo com o fogo
Para não contrariarem o fogo:
Como incham de tão razoáveis.
Se pudessem, certamente aboliriam o ponto de ebulição
Por entenderem desnecessária a exasperação da água.


              Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...