sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Hoje, é dia de Natal e, não sei,

Talvez estivesse só,

Se não fosse uma gaivota

Que repete círculos

Num céu estranhamente baixo,

Ela, como eu, longe do mar.

Ando por estas ruas distraídas

Que hoje me levariam a qualquer vida,

Ruas leves, à deriva, sem deus,

Um deus dissoluto, disperso em rituais,

Intocável a qualquer prece.

Há uma solidão que se espraia em mim,

Como um baldio, um descampado,

A infância faz força, pressurosa,

Contra o pensamento.

Não a deixo vir.

 

Nuno Rocha Morais


terça-feira, 21 de dezembro de 2021

 É certo que tudo aconteceu

No teu corpo, na tua alma,

Mas não eram teus, corpo e alma.

Digamos que se tratou de um cenário

Para que por ele as coisas passassem;

Passaram corpos, passaram anos.

Para o sofrido, esperaste propósito,

Mas não para o feliz, de que te apossaste.

Viveste tudo como teu, mercenário,

E, no entanto, agora,

Não sabes o que será de ti,

Prestes a devolver corpo e alma.

Em breve, ser-te-ão desconhecidos.

Não és senhor sequer do que viveste.

 

Nuno Rocha Morais



sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Não te deixei partir,

A raiz da memória

Enclavinha-se, funda,

Na terra, mão

De uma infância,

Fustigada pelo terror,

Que interfere.

Não te deixo dissolver

Na paciência da terra,

Algo em mim te aperta,

Te estreita, a mão

De quem também morre

                                              Para te embalar

                                              Num acalanto terrestre.

 

                                                       Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de dezembro de 2021


Conheces agora a minha pobreza,

Conheço agora o teu juízo –

Muita coisa a juntar-nos,

Não vá isto ser coisa nenhuma,

Pétalas putrescentes,

Cortina afinal sobre plateia vazia

E nós, inincontráveis,

E nós, a escuridão imóvel,

E nós, nem sequer perdidos,

Nem sequer nada.

Oxalá de nós alguma coisa,

Nem que seja só a força de uma repulsa

A distinguir a pele

Do que nos repele.

Ao menos isto – na minha casa,

O silêncio calçou a ausência

Das tuas sandálias

No nervo central de um corredor.

Dorme sobre o que não lembras –

O passado pode ser tão avaro,

Tão incerto como o futuro.

 

Nuno Rocha Morais


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Encontro de Artes Plásticas e de Poesia - Aldo Romano e Nuno Rocha Morais

"QUE NÃO ACABES NUNCA DE ME ESQUECER"

Nuno Rocha Morais

 

 

Trabalho de Aldo Romano

 

 

 

 

Obrigada Aldo Romano e Manuela Colombo pela vossa oferta

sábado, 4 de dezembro de 2021

Mãe

 A mãe dizia-lhe: o que não vires,

Escreve; o que não puderes,

Escreve. O que não escreveres

Será o que realmente viste e pudeste.

Agora sobre o pórfiro do céu,

Recomeça com aquilo que começou,

O barro mais elementar

E o leite mais necessário

Até ao fim – as palavras da mãe,

Agora que todo o outro amor é nada

E se recusa a abrir,

Tantas cidades e partida nenhuma,

Num abandono ainda quente.

Em pensamento, a mãe vem lamber-lhe as feridas,

Depois, talvez fique de novo o voo aflito

Perante demasiado espaço

E por toda a parte se ouça, ardente,

O arco sussurrante de uma voz –

Vem morrer –

Mas, se cair, há-de recomeçar,

Repetindo, repetindo sempre,

A única palavra que o salva: mãe

 Desde o princípio, contra o fim. 

 

Nuno rocha Morais


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021


Trazem a opinião do povo nos bolsos –

Bolsos com botões, bem entendido –

E vêm com a cara do povo na cara.

Depois, metem a mão no bolso,

Fingindo tirar a opinião do povo,

Mas tiram é a sua verdade  e a dos seus,

Porque, espertos, espartilham a voz do povo

E meteram a mão no outro bolso.

 

Nuno Rocha Morais

 

 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...