terça-feira, 29 de junho de 2021

 

Ainda me preocupo

Se chove na tua vida

Ou se a madrugada surge

Com uma expressão metálica:

Um amor vencido, é invencível.

 

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Monumento


Não há um monumento à estupidez. 

E, no entanto, ela prolifera

Mas talvez apenas se erga em bronze

A perpetuação de abstracções.

Quanto às estátuas dos grandes homens,

Nada acrescentam à sua grandeza,

Talvez irrepetível e, por isso, assustadora

De que foram, muitas vezes, expropriados.

A sua presença nada dirá aos vindouros:

Será objecto de curiosidade para uns,

E para outros, cada vez mais numerosos,

Não representará nada

Senão uma figura esverdeada

Pela merda das pombas e pelo esquecimento,

Que já não merece o centro de uma praça ou jardim.

Mas estes monumentos, em bronze ou pedra,

Estátuas ou bustos,

Representam, tantas vezes, um brinde

À nossa própria estupidez, perpetuada;

Representam a estupidez de uma geração

Que não soube merecer a grandeza

Dos homens que em sorte lhes couberam.

 

 – Não há um monumento à estupidez:

    A sua linhagem prolonga-se,

    A figuração de abstracções,

    Sejam homens ou animais,

   De valores de grandeza

   Representam o temor

   De que esses valores sejam irrepetíveis.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 20 de junho de 2021


“Mas não me importo de adoecer no teu colo”

                                                                                    Daniel Faria

 

Vim dentro de um corpo alumbrado,

De fogo já crisálida,

Vim para adoecer ao pé de ti,

Vim para arder como um nome

Vim para te dizer - ouves-me?

Vim para assim me apagares.

 

Nuno Rocha Morais


terça-feira, 15 de junho de 2021

 

É Junho – sei-o só pela textura do ar.

Disse ainda palavras humanas

À menina da caixa que comenta as minhas compras:

“Também gosto muito de Dickens.”

Espero secretamente que tenha lido Grandes Esperanças.

Depois no autocarro há uma criança

Que se indigna contra o pai,

Prestes a sentar-se em cima

Das pequenas flores que arrancou no jardim:

“Vais matá-las”, indigna-se.

Conheço muitos tipos de desespero,

Mas nenhum me assaltou hoje.

O meu amor infeliz fez-se esquecido.

Sou uma pessoa entre pessoas

E apetece-me sorrir-lhes.

Talvez aceitem o meu sorriso.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 5 de junho de 2021


                                                               (To Axion Esti)

Canta tudo o que é, todas as coisas,

E aquelas que não são, dá-lhes ser, canta-as,

E canta as coisas mortas

Para as não deixares morrer.

Canta a adversidade,

Não para que ela fique do teu lado;

Canta a imensidão que ilude

Fins sucessivos sem nunca presumir

Ser eterna, não para que ela te prolongue;

Mas canta-as porque a adversidade

E a imensidão te situam,

Canta-as, canta-as sobre o amor acabado,

Canta o amor acabado,

Capta todos os timbres da sua palinódia,

Como mudaram os seus olhos

Como as cores nas águas

Com o mudar do dia.

E ao cantares as coisas que são

Tu és uma coisa que é,

Porque tudo chega ao mundo

Pelo pórtico do teu canto.

Canta um mundo a ouvir-se ser no teu canto

Porque cantas, nada acabou, nada continua

Porque cantas, tudo está,

O que não volta, o que nunca esteve

E o que nunca há-de vir.

Canta e isto significa estares mudo

Para poderes ver, para que a tua voz

Não afaste o mundo, desfigurando-o,

Canta para seres o mundo

E não a volúpia da tua própria voz.

Seja o teu canto quantos solos e quantos climas,

Quantos estratos e quantas eras.

 

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 1 de junho de 2021

Tenho o coração arruinado,

Cada pulsação é mortal,

Letífera, o meu sangue

Corre como ódio,

Talvez seja ódio já,

Sem que eu saiba como,

Sequer porquê.

Mas certas coisas não se explicam

E eu tenho o coração arruinado.

 

Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...