quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Fábula


Seria Janeiro e a chuva era tanta

E as gaivotas eram tantas,

Fugidas à procela que se apoderara

Do coração das vagas.

Brilhava o espanto do gato amarelo,

Senhor do telhado à direita,

Ante aquelas criaturas,

Derradeira graça, derradeira leveza.

Seria Janeiro e a chuva era tanta,

Bálsamo sobre a terra,

Apocalipse sobre as cidades.

E tu? Não serias mais do que aparição,

Liberta pela chuva dos grilhões da terra;

Vinda até mim, oferecias-me

A antiga e efémera aliança dos lábios,

A transmigração do sangue.

Havia tantas gaivotas, eram tantas

Que todos os dias eu te falava delas

E algo do seu voo, da sua inquietação,

Da sua desesperada busca,

Se apossava um pouco mais de ti.

Depois – seria Janeiro? – a  chuva partiu

E também as gaivotas e também tu

E foi-se o espanto do gato amarelo,

Abatidos ambos num canil.

Mais não me restou do que a submissão

E na minha carne continuou a ecoar

A agonia pestilenta das cidades,

Que vão devorando a terra

Com a aridez do fumo e do vidro calcinado.

Só às vezes me surgem, espectrais, as imagens

Produzidas pelo mundo de uma fábula

Invisível e imperscrutável,

Onde estás tu e as gaivotas e o gato amarelo e a chuva,

Como se só eu tivesse partido.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 24 de janeiro de 2021


Ainda se ouve o galo,

Como um “muezzin”,

Chamar na direcção da manhã,

Ainda que sem minaretes.

Entra-se na transmigração de rotinas,

De uma em outra, de veia em veia,

Pela luz obediente, boa católica.

Ronronam bairros, trepidam,

Com o seu quê de totémico,

Mas o rosto de cariátide

É comum a todas as tribos

E nada está vivo, nem Lares,

Nem as ninfas dos bosques sagrados,

Qualquer crença, qualquer gesto

É urticante:

Todos os deuses convergiram

Para o grande vazio

Ou talvez estejam no centro

Do grande vazio intransponível

E o galo canta pela terceira vez.

 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Invisível

Melhor seria nada saber de ti,

De como se desdobra o que és

E onde estás e quem vês.

Mas a tua vida obstina-se

Dentro da minha vida.

É na verdade um fruto vazio,

Forma traçada na areia

Que a maré não apaga.

Se fecho os olhos,

Logo sobre essas águas fechadas

Vens caminhando,

Luminosa, e não findas

Mesmo quando te desvanece o repente

Em que retomo os olhos,

Mas vou ainda pelos teus passos fora,

Sei quem és e aonde vais.

Em riso existes, e rumor, e gesto,

Mas sem margem onde eu te veja

E invisível permaneces.

 

                                                                Nuno Rocha Morais


sábado, 16 de janeiro de 2021


 

 

 

Família. “Bolachinhas? Café?

Chá-preto, camomila, tília?”

Desajeitada e constrangida num crescendo triste,

Vai perdendo os seus ditos –

Provérbios e adivinhas que já ninguém sabe como acabam,

Contas que não se deixam enfiar.

A família padece de cada vez mais pó,

Úlceras que rebentam, estrelas doentes,

Rótulas esmagadas, cabeças abertas

Ou simplesmente ausentes,

De crias ferozes que não se conhecem entre si.

A família é cada vez mais silenciosa,

Sufoca, estiola, corre a esconder-se

Em despensas, caves, desvãos

De casas em ruínas ou à venda,

Fecha-se em arcas, entre enxovais

Roídos por traças e memória

Sem referente ou sentido.

Oh, matriarcas, perfume de naftalina,

Oh, patriarcas, outrora tonitruantes

Reduzidos a um élitro, a um zumbido,

A família perdeu moradas e rastos.

O sangue é tinta sempre fresca,

Mas seca depressa. “Já podemos ir embora?”

Desfloram-se gavetas, atravessam-se

A vau testamentos,

Outros tantos rios de esquecimento.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 10 de janeiro de 2021

 

Rio-me de chorar muito,

Penso, que à força de esperar,

Fiz um buraco no céu,

Que pela minha persistência

Se rege o sol.

Rio-me por também eu crer

Na mais piedosa das mentiras –

A de que, ao fim, o sofrimento

Revelará o seu sentido

E, mesmo severo, admoestando

(“Homem de pouca fé”),

Abrirá as mãos, de onde sairá

A recompensa, a graça

Ou apenas um estado neutro

Que muito deve à felicidade –

A mais cruel das mentiras.

 

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 5 de janeiro de 2021


            Enquanto o Ano Novo se aquieta pela casa

E visita os primeiros sonos,

Eu medito na tua memória,

Nos acontecimentos que dela saíram,

Orlas de espumas de um tempo antigo.

Ouvi-te falar da tropa como o paraíso,

Talvez uma daquelas ironias,

Necrológios, uma linguagem

Que só na tua memória é inteligível,

Mesmo num ar que nada sabe de pássaros,

Num sangue de folhas mortas,

Porque então só aí o ar é claro,

Só aí o teu corpo compreende a respiração,

Os olhos conhecem os climas das suas cores.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...