terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Saber que estarei, mesmo pouco,
Um pouco na tua voz, resíduo
Que me basta ser do teu riso;
Saber que serei um pouco
Do que guardas por dizer
E que talvez nem me lembres,
Porque não és cada recanto de ti
Todos os dias, saber isto é o bastante
E estou bem aqui,
Onde há do mar
Aquilo que tu não vês.
E saber que estarei nas tuas noites
Quando discorrer um azul cálido.
E quando todas as outras noites se sentirem chamadas,
Quando o teu sono, como mar entre elas,
Também me vier buscar –
Então caminharei
No teu olhar, em quanto
Não sabes que vês.


Nuno Rocha Morais
(Parabéns meu amado filho, volta sempre...)

domingo, 29 de dezembro de 2019

A caixa de costura



Voltei. A ternura da mãe,
O amor austero do pai
Esparzem sobre mim
E o tempo abandona a idade
Para correr inumeravelmente pelos sóis.
Voltei. Sinto o cheiro
E vejo alguns objectos habitados
Pela lenta e freática trama dos símbolos:
A caixa da costura, os livros,
Os quartos, a mesa, as cortinas.
Voltei. A casa prolifera pela luz,
Recebe-me, eu pertenço.
Voltei como quem emerge
Das águas da absolvição.
Ali está ela, a caixa da costura.


Nuno Rocha Morais
(Inédito)

domingo, 22 de dezembro de 2019

Biografia

Sou treva
E não sei ser dia,
Sou distância 
E não sei ser estrada,
Sou grafia 
E não sei ter sentido.

Nuno Rocha Morais









                                                                                    Pintura de Aldo Romano

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

São cinco horas da tarde, já caiu
A pesada noite de Dezembro
E há no frio uma avidez
De matança dos inocentes.
O trânsito esbraceja, corre, brama.
Na margem da avenida, uma mulher
Espera que o sinal mude.
Há-de esperar muito, muito tempo,
Por essa espécie de anunciação verde.
Ao colo traz uma criança que dorme.
Parece muito cansada,
Como quem regressasse do Egipto,
Mas talvez seja só de um dia de trabalho
Teoricamente, é um menino,
Mas também nisso a tradição
Pode estar enganada.

Nuno Rocha Morais

(Poema de Natal do Nuno para os seguidores deste blogue)

sábado, 7 de dezembro de 2019


Falam-nos dessas guerras muito grandes 
Esquecem as que se calam dentro das portas
Que envolvem menos som menos gente
Mas não mais morte não mais armas não 
Falam dessas guerras para nós distantes
Felizmente mas esquecem as guerras
Que matam o brilho no dia
Esquecem essas guerras que como as grandes 

Perfuram a atónita paz
Enrugam a calma de raiva e choro


Guerras terríveis que dentro de portas 
Se adensam 


Nuno Rocha Morais 
(Poemas Sociais 11/2019)

domingo, 1 de dezembro de 2019

Christmas Truce (1914)










Era na guerra para acabar com as guerras,
Era na guerra em que as mães
Se afogariam nas lágrimas pela última vez.

Era na guerra
O longe não dormia:
O fogo, o som, o sal, o rogo.

Era na guerra dos homens
Mais pequenos do que a terra,
Eram os homens com alma de verme.

Era na guerra que o canto calou,
Um deus que se sentiu nascer,
E cada morto perdoou ao vivo
A vida.

Nuno Rocha Morais

sábado, 23 de novembro de 2019














Que sei eu do passado?
Só o que em mim há de presente.
Não posso olhar para trás,
Parar para ver que estou construído
Sobre tudo o que perdi,
Parar para ver quem morreu,
Quem amei, quem foi,
Parar para traçar na memória
Todos esses nomes, agora irreais,
Vultos, sombras líquidas, sonhadas.
Não parar sequer para dizer hoje,
Não parar sequer para pensar
Que a manhã é apenas mais um sol-posto.


Nuno Rocha Morais (Galeria) 

domingo, 17 de novembro de 2019

 
A Alexandre O’Neill

Perdoa-nos, Alexandre, a nós,
Poetazinhos por metáfora,
Rói-unhas, sempre agarrados à vida
A ver se a esticamos um bocadinho mais;
Que fazemos da poesia destilaria,
Não para a dar a todos,
Mas para nos emborracharmos de solidão,
Construirmos o nosso quadradinho iluminado,
Para que os nocturnos nos invejem
E leiam os nossos versinhos e nos agradeçam em bronze —
O da memória só não chega.

Perdoa-nos, Alexandre,
Que não soubemos ser teus herdeiros,
A rir, quando, na verdade, choramos,
A olhar para o espelho e a colar o reflexo em quem somos
E não fazer operações plásticas no pensar e sentir.

Perdoa-nos, Alexandre, a nós,
Poetazecos do beco seco,
Que não sabemos que há dois lados numa linha:
O de cá, que é onde apodrecemos,
A linha que proíbe que passemos
E o lado de lá que nos obriga a passar,
Onde o reino não é de rei nenhum.
Perdoa-nos, Alexandre, a nós
Que não sabemos
Não ousamos chegar ao outro lado,
Chegar ao teu lado,
Real O´Neill,
Onírico O´Neill
Completo O´Neill
Poeta O`Neill
E, ah, português O´Neill
(Ironia até ao fim!)



Nuno Rocha Morais (Galeria) 

sábado, 9 de novembro de 2019

Sorrisos para Mona Lisa


I
O sorriso insondável 

Revelação sem evidência,
Se uma mulher feliz,
Se traída, se melancólica,
Se jubilante, se terna –
Nunca com tal intensidade
Um sorriso foi tão pouco:
Um sorriso para que nunca saibam 

Quem fui, quem sou.

II
Sorrio-me talvez para vós, 

Que me mirais
E estais mortos.


III
Atraiçoei a minha linhagem,
Entreguei-me nos braços de um amante vil – 

Este estar aqui –
Por ódio, por ódio;
De ódio é este sorriso
E os olhos semicerrados.


IV
Ou a fadiga
De que nunca sabereis, 

Convencional esposa
E mãe e trapo,
Por sorriso só esta fadiga 

De que nunca sabereis.

V
Nada entreabre de mim
O sorriso que nem é meu, 

Mas uma gentileza do pintor.

VI
E eu saberei 

Tudo de vós, 
Por isso sorrio. 

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 3 de novembro de 2019


Mudamos de heróis
Ruy Belo

É ainda litoral a fantasia
E o sonho é costume de estar vivo
De ter os olhos abertos
Sentimos esta chama de nós contra nós
Que bom seria sermos outros
Nas alheias bocas o nosso nome desferido
Na sanguínea rosa de herói
Somos jovens crescemos em nós
E já lançamos de nós as raízes
Do desejo de sermos heróis
De invejarmos os heróis
Desde crianças o sonho dos heróis
Figura colorida
Musculada coragem
Assombro inteligente
Heróis
Nunca pacificados dentro de nós
Nunca conseguimos pentear o ser
Com uma calma e burguesa risca-ao-meio
Depois vai-se tornando frígida a fantasia
Em nós decresce o esplendor da admiração
Pelos heróis de sonho
São outros agora “mudamos de heróis”
É o poderoso magnate
O empresário(a) de sucesso
Invejamos as mãos que conhecem
O lauto sabor da fortuna
São estes os heróis que desejaríamos
Vivessem em nós
“Mudamos de heróis”
Continuando sempre a querer ser
Outros.


Nuno Rocha Morais - Galeria 

sábado, 26 de outubro de 2019











Tenho mais isto e mais aquilo
E não sei quê para fazer.
O feito é fio por fiar.
Com ele ao ombro, ando intranquilo,
Alvo de fogo que é o dever
Que nunca pára de picar.

Mas como tenho que fazer!
Ensarilhado em decidir,
Na encruzilhada do dever
Para que gesto hei-de partir?
Querer fazer é coisa pesada
E à luz do feito não há nada.

As horas descem do seu leito,
Ainda não fiado o feito.

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 15 de outubro de 2019

POEMA PARA “ELEGIA PARA A MINHA CAMPA” DE S. DA GAMA


Também eu estarei só,
Até já sem mim,
Não no seio da terra,
Pois que de vida é a terra,
Mas no ventre da morte
E será então que outros
Virão depositar lembranças,
Belas, das que não houve,
Lembranças sinuosas;
Virão depositar pétalas esmaecidas
De pálida e apressada ternura,
Apenas porque estarei só
E estarei morto,
Já frio, já mármore, já morte.

Também eu estarei só,
Apenas rodeado pela atenção
De círios ou rosas,
Vigilantes, tentando ver
E gravar em cor ou chama
A minha subida ou descida,
Se as houver.

Mas ver-me-ão apenas só,
Embora com o mundo todo em torno
Matéria jorrante,
A minha alma será corredor,
Escuro espaço de solidão
E eu estarei só.

E será apenas então,
Eu, que cantei toda a vida,
Que, no silêncio,
A minha voz se espalhará
E se tornará alegria nas coisas,
Pureza de união
Para que a minha voz,
Ao invocar o mundo,
Não mais esteja só.

E apenas eu estarei só,
Só.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 13 de outubro de 2019

Ring, ring, ring, ring... Catholic bells W.C.W.

(Poema publicado na Gazeta Literária nº5, da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, dedicada a Daniel Faria)

domingo, 6 de outubro de 2019

O Pintor

Não quer deixar as coisas na tinta
Tal e qual ele as vê,
Tal e qual elas são.

Quer pintá-las como as imagina
Escondidas num essencial silêncio,
Numa virginal impenetrabilidade.

Esbate os contornos das coisas,
Os seus limites, afoga-os
E, de certa forma, ilumina a sua verdade.

A tinta, asas e olhos do pintor.


Nuno Rocha Morais

                                                                                                               

domingo, 29 de setembro de 2019

NERVAL


Lá fora, a noite preta e branca.
O avião trepida, por entre a neve 

Como dilacerado entre dimensões. 
Pontos esgarçados pela velocidade 
Transformam-se em linhas.
A loucura pode ser o mesmo
Que a sabedoria; a memória
Pode ser espaço; uma mulher 

Ilumina e perde. Ao cabo de tudo, 
Resistir à poeira escolástica. 

     Nuno Rocha Morais (Galeria)

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

FERNÃO DE MAGALHÃES

 
Ali, onde já a praia deve mar
E as ondas se repartem em chegada
Ou regresso ao oceano do horizonte;
Ali, onde o vento inda é eco de luta

E as conchas inda esgares de outro sangue;
Ali onde caiu quem nunca cai,
Ali onde jaz o nome da aventura
Ali, o unificador da união,

Guia imolado para que houvesse
Nova luz no caminho já traçado,
Para que entre a bruma clareasse

A terra, p´ra que houvesse um limite
Para que este mundo fosse o nosso,
Para que a humanidade fosse nossa.


Nuno Rocha Morais

sábado, 14 de setembro de 2019













Ridículo, claro:
Também o chão é aleatório,
Não um aliado;
Um jogo casual de rios,
Ervas, pedras , cidades, fronteiras.
Mas, enquanto o rugido
De uma turbina me arrasta
Para longe, longe de tudo –
Um pequeno tudo,
Algumas ruas onde assomam rostos
E um sol familiar
E uma partitura de ruídos
Que são a minha vida –
Cresce uma angústia
Que se vai tornando espaço,
Aresta, planalto, continente,
E me empurra contra uma superfície
Lisa, como de metal,
Onde não deixam marca
Unhas ou dentes.
E esta angústia, só esta angústia,
Deve ser a minha pátria.


Nuno Rocha Morais

sábado, 7 de setembro de 2019

Que não seja o mito
De mamas e rabo grandes,
Mas o sol regido pelos caprichos
De uma lua saturnina.
Só os barbitúricos a compreenderam,
Só foi feliz nesse limbo,
Ausente da carne queimada
Por focos e holofotes,
Ardendo entre dois nomes,
Sufocando nos sorrisos e beijos contrafeitos
Sob todos os rostos
Que nela quiseram ver –
A loura, a bela dos calendários,
A voz aveludada e estúpida.
Mas de nada lhe serviu ser Marilyn,
Não pode ter sequer os seus sonhos.
Ser Marilyn tornou-se o pesadelo imortal –
Encurralada na mulher
Que só sofreu o amor,
A chama procurando refúgio
E encontrando sempre a extinção
A morte de Marilyn é a história de um crime
E a arma, o que restava de Norma.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019











O cume da tarde arredonda-se,
Erodido pelo tempo,
E, todavia, os longos comboios
De barrocas e diurnas flores
Cruzam, lentos, as cúpulas,
Espalhando o seu perfume fútil,
Chocando uns com os outros,
Rebentando-se, esvaziando-se –
Secos dedos apontados, corações estáticos.

A Leste, um pulso consome-se,
As veias já são percorridas
Por um sangue arrastado.
Uma palavra apodrece;
Timor - Temor.


Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de agosto de 2019

DER BLAUE REITER

Esperei-o, dia após dia,
Ao cavaleiro azul, e não sei porquê.
Os olhos percorreram o prado
E a floresta, mais acima,
Esperando que do longo tempo da esperança
Emergisse o cavaleiro azul.
Talvez tivesse já passado,
Talvez já não viesse.
Veio, mas não o vi,
Tão somente ouvi o seu tropel
Por estas palavras
E é nelas que prossegue viagem
E abre um trilho que já não posso seguir,
O cavaleiro azul.
O sol, aqui, entra já na sua oclusão,
Para crescer aí, aí onde estás tu.
E se ouvires o cavaleiro azul,
Sai-lhe ao caminho, fá-lo parar,
Sabe quem é e ao que veio.
Fala-lhe. Dá-lhe de ti
O que tiveres para o salvar
E estará cumprido o poema.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 11 de agosto de 2019

Joseph Brodsky

Só pelos poetas se não chora com palavras
E não gostarias de uma elegia
Onde a tua morte corresse
Entre as margens de uma dor e um desamparo,
Balbuciantes, confusos,
Baba de velhos a quem tudo ultrapassa.
O verso é uma arquitectura insondável
Que esconde um leão —
É só o que, como elegia, te deixo,
A tua lição que talvez não tenha aprendido.
Não gostarias de uma elegia,
Sobretudo dessa em que te lembrassem
Que cada grão de areia desta realidade
É um exílio, uma distância imarcescível.
E esqueço a elegia,
Onde apenas se choram os vivos
E por quem a escreve.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 4 de agosto de 2019

Poema de cortesia


Foi a porca devoradora das próprias crias,
A mãe que expulsa os seus filhos.
As ruas parecem amáveis
Enquanto passeio por elas,
Enquanto a minha própria mãe
Agoniza, sem mo dizer.
E, no entanto, a policia expulsa
Três sem-abrigo que elegeram
A colunata do Banco da Irlanda
Como tecto provisório para a noite;
E num beco imundo, onde a treva
É ainda medieval,
Outra mãe, com o filho ao colo,
Pede esmola. É claro, os tempos não são sociais,
Mas a alegre culpa não é da Irlanda.
[A culpa morrerá secreta viúva
de palavras de futuro.]

Nuno Rocha Morais

domingo, 21 de julho de 2019















J´ai plus de souvenirs que si j´avais mille ans.
                                                   Ch. Baudelaire

Acontece, às vezes, que sou demasiado velho.
Caudaloso, transbordo das margens,
Sinto-me maior que a ciência do tempo
E nada há que eu não tenha feito
E não há espesso cansaço que eu não conheça.
Tudo parece repetir-se
No fluxo de um ciclo conhecido e fechado,
Tudo possui um eco dentro da minha idade.
Já não me espanto somando as ruas
E as gentes com as estações.
O timbre da lágrima ou do riso sobre a página
Despertam o verso mais citado,
O verso que, de tão famoso, é já silêncio.
Venci a densa questão e o medo e a maravilha.
Acontece, às vezes, que sou demasiado velho,
Que em mim a vida mata por ser infinita.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...