domingo, 29 de outubro de 2023

Não entendes esta tristeza

Que, subitamente, me queima a voz

E rapta os meus olhos para a sua distância.

Vou, então, procurar a melancolia do Porto,

De que às vezes me falas e dizes que não gostas,

Vou procurar os recantos e sombras

Que a solidão visita e onde se demora,

Certas ruas furtivas, quase secretas,

Ruas quase conchas,  

Porque as ruas no Porto não conduzem,

Mas fogem, entranham-se, estreitam-se,

Fogem em pequenas vielas sombrias.

Vou procurar a melancolia do Porto,

Que está em todo o lado,

Na humidade antiga, no frio cinzento,

Nas tardes de um verão indeciso, fustigado,

Até no riso dessas crianças

Para quem o mundo todo

Não vai além das pontes e do cais.

Não preciso de a procurar,

À melancolia do Porto:

A tristeza que não entendes correu para ela,

Desaguou já na confiança de antigos conhecidos.

Posso ficar a sós com a melancolia do Porto. 


Nuno Rocha Morais


domingo, 22 de outubro de 2023

Mudança

 

O meu velho relógio,

Aquele que assistiu à infância,

Que consumiu as horas felizes,

Parou.

 

O meu velho relógio é o local

Onde o tempo é uma sombra vazia,

Onde os dias são velas arriadas.

      O meu tempo é agora outro. 


    Nuno Rocha Morais

    (Poemas dos Dias 2022)

domingo, 15 de outubro de 2023

Quadro



O crepúsculo demora-se a esboçar

Nos longínquos céus tons impressionistas.

 

O dia termina e deixa ao relento 

Cachos de cadáveres,

Homens e cavalos de olhos vazados 

Por uma expressão vazia, polar.

O sangue já se cansou e parou de correr.

 

O ar, cortado todo o dia 

Pelas lâminas dos gritos,

Pelos gritos metálicos das lâminas que se encontram,

Pelo ódio a que outro ódio responde,

É agora plácido, pacífico.

Foi precisa a morte de todos estes homens

Para que houvesse paz.

 

E nenhum destes que aqui caiu,

Sorvido inteiro num esgar de dor,

Há-de encontrar o descanso

Da vitória ou da derrota:

Para os mortos só há a morte. 


Nuno Rocha Morais

Poemas dos dias (2022)

domingo, 8 de outubro de 2023

Noções de Linguística Aplicada


Um sujeito de bruma,

Um agente chamado poeta

Que rema contra os rumos,

Um predicado múltiplo, estilhaçado,

Precário e eterno,

Um retorno a lado algum,

Memória do imemorável,

Semente de uma qualquer consciência afogada.

Objecto directo como um polvo de cores,

Um relâmpago de gestos,

A fugacidade de uma permanência,

A superfície como um buraco

Esboroando-se lenta, lentamente.

Objecto indirecto a amada,

Incerta, distante, onírica, imaginada,

Próxima, terna.

Obliquo, um complemento circunstancial de silêncio,

Um tempo construído nas palavras,

Um modo mutável, quase miragem.

Um meio de voz, a voz profanando,

A causa, a sede desesperada das estrelas invisíveis

Mas nítidas, e este é o fim,

Porque fim não é síntese, não é completude

De nada ou ninguém.

Sem companhia, um sujeito transforma,

Faz emergir da estrutura de superfície

A estrutura profunda

Destruindo a gramática do pó,

Destruindo linguísticas, sintaxes, morfologias,

Queimando as palavras hieráticas,

Mantendo apenas viva na lembrança a arte de esquecer.



Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos dias - 2022)

domingo, 1 de outubro de 2023

Assim vivo

E procuro desesperadamente o meu destino,

O caminho certo,

A direcção tutelar,

A safra útil.

Vivo em busca do destino

Para evitar os momentos adversativos

E condicionais,

Os terríveis “se’s” que suspendem

Os passos e os sonhos.

A mim o meu destino,

A mim a minha morte

                                      De uma vida cumprida.


Nuno Rocha Morais
 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...