sexta-feira, 30 de agosto de 2019











O cume da tarde arredonda-se,
Erodido pelo tempo,
E, todavia, os longos comboios
De barrocas e diurnas flores
Cruzam, lentos, as cúpulas,
Espalhando o seu perfume fútil,
Chocando uns com os outros,
Rebentando-se, esvaziando-se –
Secos dedos apontados, corações estáticos.

A Leste, um pulso consome-se,
As veias já são percorridas
Por um sangue arrastado.
Uma palavra apodrece;
Timor - Temor.


Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de agosto de 2019

DER BLAUE REITER

Esperei-o, dia após dia,
Ao cavaleiro azul, e não sei porquê.
Os olhos percorreram o prado
E a floresta, mais acima,
Esperando que do longo tempo da esperança
Emergisse o cavaleiro azul.
Talvez tivesse já passado,
Talvez já não viesse.
Veio, mas não o vi,
Tão somente ouvi o seu tropel
Por estas palavras
E é nelas que prossegue viagem
E abre um trilho que já não posso seguir,
O cavaleiro azul.
O sol, aqui, entra já na sua oclusão,
Para crescer aí, aí onde estás tu.
E se ouvires o cavaleiro azul,
Sai-lhe ao caminho, fá-lo parar,
Sabe quem é e ao que veio.
Fala-lhe. Dá-lhe de ti
O que tiveres para o salvar
E estará cumprido o poema.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 11 de agosto de 2019

Joseph Brodsky

Só pelos poetas se não chora com palavras
E não gostarias de uma elegia
Onde a tua morte corresse
Entre as margens de uma dor e um desamparo,
Balbuciantes, confusos,
Baba de velhos a quem tudo ultrapassa.
O verso é uma arquitectura insondável
Que esconde um leão —
É só o que, como elegia, te deixo,
A tua lição que talvez não tenha aprendido.
Não gostarias de uma elegia,
Sobretudo dessa em que te lembrassem
Que cada grão de areia desta realidade
É um exílio, uma distância imarcescível.
E esqueço a elegia,
Onde apenas se choram os vivos
E por quem a escreve.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

domingo, 4 de agosto de 2019

Poema de cortesia


Foi a porca devoradora das próprias crias,
A mãe que expulsa os seus filhos.
As ruas parecem amáveis
Enquanto passeio por elas,
Enquanto a minha própria mãe
Agoniza, sem mo dizer.
E, no entanto, a policia expulsa
Três sem-abrigo que elegeram
A colunata do Banco da Irlanda
Como tecto provisório para a noite;
E num beco imundo, onde a treva
É ainda medieval,
Outra mãe, com o filho ao colo,
Pede esmola. É claro, os tempos não são sociais,
Mas a alegre culpa não é da Irlanda.
[A culpa morrerá secreta viúva
de palavras de futuro.]

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...