sábado, 23 de abril de 2022

Surpreende quão fácil é o amor,

Como corre livre de um corpo a outro,

De uma alma a outra, mesmo tropeçando,

Confiado, em algum medo,

Mas correndo ainda, porque para isso é amor

Para correr assim, sem pressa,

Porque, mesmo devagar, tarda sempre

Para ser assim, inteiramente, um ritmo que é seu,

Para acontecer exactamente a uma hora,

A um momento que, previsivelmente,

Jamais esteve previsto, e ficar enquanto queira

Sem querer.

 

Nuno Rocha Morais


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Pinturas rupestres

 

Pinturas rupestres:

O princípio do poema é o mesmo,

Figuram-se aí palavras

Que, magicamente, por simbiose,

Desejaríamos capturar.

E as palavras não são lugares

Onde remotas ecoam palavras,

Como imagens de imagens.

 

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 12 de abril de 2022

 Ó Deus feito de dor,

Ó Deus encarcerado num homem,

A tua agonia derradeira e infinita

Estorce-se ainda sobre a nossa alma:

O eco de uma culpa enrouquecida

Sobe da garganta dos tempos

E bate no peito.

No roxo cimo dos séculos,

Por nós, por mim morres,

Num sussurrado sismo te esvais.

 

Mas, ó Deus, humano morreste

Para que fosses Deus,

Para que as pedras se conjugassem

Com o incenso e as máximas vozes dos homens,

Para que o bem e o mal

Não fossem a mesma matéria informe.

Fragmentaste-nos, dividiste-nos,

Somos o verbo dilacerado entre treva e luz.

Ó Deus, acabaste com a nossa inocência.

 

Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 8 de abril de 2022

Exílio

Atiraram o sangue ao vento.

Plantaram-no nas colunas de espaço,

Buscaram a suave espessura

De um lugar, de uma nave

Onde vozes ancestrais navegam ainda.

Sentiram toda a distância,

Toda a gélida distância de si próprios,

Sentiram o vácuo do ninho obscurecido,

O desvanecer dos lábios que os acolheram

No brotar da infância.

Assim se pode morrer,

Assim se pode viver,

Assim podem coincidir exactamente

A vida e a morte.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 3 de abril de 2022

Música. Transmutação pela dança.

Ancestrais gestos, outros corpos

Que a música desperta em nós.

 

Pede-nos, ordena-nos: irrefragável apelo

Pela dança de um urso, uma lontra,

Um felino, uma águia,

Um rio, uma pedra,

Um delírio, uma contemplação,

Uma explosão, um tufão,

Um círculo, um magma,

Uma doçura, um cavalo.

 

Música, pela dança,

A comunhão das formas,

A libertação do preconceito das formas:

Reconhecemos o fluxo indivisível.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...