sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Também o deus e o diabo

Se abastecem nos hipermercados.

Cruzam-se, trocam oblíquas saudações

E correm a mergulhar nas promoções,

Debatem-se nesta teia imensa

De corredores, onde as formas são valores.

E deus e o diabo tentados, deixam-se enredar

Pelas sereias publicitárias,

Compram sabonetes, vídeos,

“Delicatessen”, pensos higiénicos

De qualidade superior,

Panelas, carnes frias, cerveja estrangeira.

Os hipermercados vieram resgatar o inútil,

E, benditos, benditos hipermercados,

Vieram sanar a ferida

Da guerra primordial:

O diabo e o deus comentam na caixa

Os preços, falam deles

Usando, naturalmente,

Hipermetáforas e hipérboles de hipermercados.


 

 Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Estimativa

 Nem só tu, nem apenas eu:

Dizer que somos dois é anular

Todas essas variáveis

Que nos decidem e continuamente

Expandem o seu território de caça

E propagam a sua mutabilidade

Às sombras quietas.

Somos dois por convenção

Ou por facilidade de expressão

Estimar é exasperar,

Talvez sufocar.

Só inumeráveis somos estáveis,

Só incontáveis somos puramente

Dois.

            - Um singular que esconde

               Os seus muitos plurais

               Sem exercer qualquer multiplicidade,

               Sem perder a qual – idade única de ser uno.

 

Nuno Rocha Morais



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O homem sem qualidades


As bocas são parentes do patíbulo

E, à força de te percorrerem

As opiniões tantas e a sua peçonha,

A sua regra irrespirável

Verás que em ti nada cresce

A não ser o deserto,

Alimentado por toda a areia

Que te gera o coração

E prevalece.

Que fazer se a alma que carregas

É já o teu purgatório?

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 8 de novembro de 2020

 


Ouves a tua loucura

Que geme, em posição fetal,

Tão secreta, triste,

Infinitamente triste.

Como uma cidade,

Estende-se em veios subtis,

Pontes e lugares onde,

Apesar de existentes,

Não se poderá nunca chegar.

É velha a loucura,

É velha a sua posição fetal,

Está há muito em nós

E poderemos nunca chegar à loucura,

Apesar de loucos.

Quão insanos seríamos,

Não fôramos loucos?

Somos loucos e não sabemos

Se alguma vez regressaremos da loucura,

Como não sabemos se alguma vez,

Em nós perdidos,

Regressaremos de nós.

 

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 

Gosto deste sorriso

Com que embalam ou adornam

A palavra: “falhaste”.

Quase blandícia,

É a sinceridade bondosa

Em que me soterram.

Num dos lados

Do que parece chamar-se existência,

Também aí me encontram

Errando, errado, conduzido por esse sorriso.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...