sábado, 26 de fevereiro de 2022

 


A mais incerta bruma

Adormece formas e contornos.

Toda a realidade é uma sugestão

E o tempo parece ainda hesitar

Entre solidificar o mundo

Ou apagá-lo para sempre

No mais branco caos.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Polifemo


Uma geringonça humana.

Desejaria ter-te convertido

Em promontório. Assim não o quis

A ira insondável dos deuses.

Punição por ter nascido assimétrico,

Ferindo toda a noção

De medida e proporção.

Qual foi o desafio? Ninguém sabe.

Sucumbiu às astúcias da beleza

Quando todo o seu mundo era uma ilha

Onde guardava rebanhos.

Como segunda punição, os deuses

Quiseram reparar o seu erro.

Cego, gritando contra Ninguém,

Chamando por Ninguém, clamando vingança

Contra Ninguém, escarnecido por Ninguém,

Mais do que nunca desejou o ciclope

Converter-se em promontório.

E este desejo gerou a sua prole.

 

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Concerto


Silêncio na sala delimitada

Rigorosamente pela escuridão –

À luz, apenas a derrogação em cena,

Agora, a música – mão

Aflorando folhagem e súbita

Gestação de anjos e elfos

E de um deus cavo e sombrio.

Agora, há uma razão

Para a estultice de um trocadilho:

Esta é uma sala de desconcertos.

A música traz em si voo

E espaço, espaço que invade o espaço da sala

E com ele foge em todas as direcções.

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 13 de fevereiro de 2022

 

Não rasgo nada,

Bilhetes, cartas, fotografias,

Não queimo sequer

A memória dos teus olhos,

Não retribuo a dor que geraste

A crueldade não te pertence,

É a de um amor

Que ficou para assistir 

Ao seu próprio fim.

 

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

 Há nomes que ganham ressonância mágica,

Cidades – Metz, Lyon, Thionville –

Que crescem misteriosas,

Cidades transmontes,

De catedrais súbitas,

Cidades na sombra de jardins,

Cortejadas por rios e mares distantes,

Cidades que caminham ao nosso encontro

E só existem nos olhos de amantes,

Cidades que mais ninguém conhecerá,

Por nós reescritas, segredo comum,

A três, com o próprio espaço,

Que não será jamais o mesmo lugar,

Cidades abrindo-se e são as tuas mãos,

Metz, Lyon, Thionville.

Outros encontrarão das cidades

Apenas o rasto da errância

Porque as cidades, essas, foram connosco,

Metz, Lyon, Thionville, Luxemburgo,

As cidades são o que nasce

Do que sentem as mãos

Quando as outras se dão e ficam.

Cidades de uma qualidade felina

Entre o teu país e o meu,

Um terceiro, quando pousas a cabeça no meu ombro,

Metz, Lyon, Thionville, Luxemburgo.

 

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...