sábado, 27 de maio de 2023

  

É muito útil ter estado em vão,
Ter sido em vão, ter – claro – amado em vão,

Muito claramente em vão.

Saber que é vão o vento nas árvores

E vã a vida dos corvos pelos campos,

Que as mãos nada podem sobre o reino dos olhos,

Que nada mais há a dizer

Quando as mãos falam

E ficará tudo dito.

É muito útil falar em vão,

Para logo aí, se começar a desmantelar

A vanidade da noção do vão.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Justificação

 

É esta poesia amarga

Que me tortura e afaga.

 

É a poesia de desdita

Que me implode e me grita.

 

É a poesia auto- de- fé

Que me mata e põe de pé.


Nuno Rocha Morais

domingo, 7 de maio de 2023

             Stabat filius

 

E era a mãe que sofria. Cruz e noite.

Fechava-se, o seu riso diluía-se.

O filho ouve na voz da mãe

O lastro escuro de uma resignação,

Sulcada por veios grossos de amargura,

Tudo afinal a apodrecer em enganos –

A mãe coragem está cansada, tem medo,

E a idade do medo é sempre menina,

E eu tento fazê-la rir,

E espero ter guardado em mim,

Depois de anos a fio com esse riso a pegar em mim,

Um riso suficientemente poderoso

Para, com uma gargalhada ex machina,

Agora a salvar. Dorme, mãe, dorme um sono pequenino.

Revoada potente e luminosa, hoste dourada

Percorrendo corredores, recantos, desvãos,

Onde costumam esconder-se todos os medos,

Desencantando as sombras dos seus terrores.

Mãe tamanhinha, de idade menina

Ingénua, empreendedora, curiosa, dinâmica, incansável,

Determinada. Não suspires, mãe, de tanto mudar cansada,

Pela expiração da mudança.


Nuno Rocha Morais


segunda-feira, 1 de maio de 2023


Em frente, fica o último prado

Onde pasta o último cavalo.

Atrás do prado, naufraga, afoga-se,

Soçobra o último sol

E nunca mais haverá um sol

Com face de prado e cavalo que pasta.

Amanhã, nascerão ali prédios,

Semeados por arquitectos,

Regados por homens de mãos grossas,

Impessoais, neutras, precisas

E, plantas concisas, brotarão os prédios.

Depois virão as mulheres

Que penduram nos prados dos fins de semana

Os seus alvos, perfumados esforços

Ou regam as suas enfermiças plantas,

Pálidas, sem vigor que cedo morrerão.

Afinal, o que é isto de Natureza?


Nuno Rocha Morais 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...