sábado, 29 de agosto de 2015

Cronologia fechada,
O formato do costume, sem eufemismo –
Um nome e as duas datas fatídicas,
Uma quase tão terrível como a outra,
E o frio cavado entre elas –
O formato de uma vida.
Parecem tão próximas
As duas cabeças do tempo,
Cúmplices omniscientes que se fitam,
Sem uma palavra sobre a sua maquinação,
Nada, nem o vagido da primeira
Nem o estertor da última hora,
Nenhum sinal, nenhuma linha,
Nenhuma espuma de ausência
Euforia, desespero, alegria.
Nenhuma ruína de suor,
Enzimas, fluidos, sucos
E, se entre as duas datas, houve amor
Morreu com a sua imortalidade
Ou mudou-se para outras esferas.
Só o ressumbro do vazio.
Entre as duas datas, tudo subsumido,
Isto é, asfixiado, devorado, perdido.
Entre as duas margens, um deserto,
A calcinação resignada,
A submissa e total ausência de verbos
De que nascem vozes, nomes, corpos, dias.
Tudo se confina a isto, a este punhado de caracteres,
Um nome e duas datas, entre as quais
Tudo aconteceu, ou nada,
E tudo dorme, tudo jaz, ou nada,
Num golfo seco, reduzido a um traço, sem mais.
As incógnitas cansaram-se de brincar às equações
E aqui está a demonstração algébrica
Em que a vida confirma o que sempre suspeitamos
E por fim se confessa instante.

Nuno Rocha Morais





domingo, 23 de agosto de 2015



Morreremos um dia,
Consequência natural da acumulação
De mortes que atravessamos.
Sabemos isto, até quando o esquecemos,
Sabemos que a nossa morte
É a promessa de que outros vivos virão.
Mas tudo acabará, se se consumir o espaço
Em que todas as vidas
E todas as mortes se completam.

       Nuno Rocha Morais



sábado, 15 de agosto de 2015

Politicamente correctos


Entre dois fogos, estes salvam-se sempre:
São os devotos de uma viscosa equidistância
E  nas entranhas têm apenas uma falsa temperança.
Aí estão, constituídos árbitros de tudo,
Pairando acima de erros e paixões
À força de sangue frio e fogo lento,
Em nada diferindo dos abutres,
Salvo na máscara que usam.
Estes são os que esperam, assépticos,
Estando ao mesmo tempo com a maioria e nas minorias.
Compreendem tudo sem jamais incorrerem em nada.
E como praticam a arte da meia-verdade
Isenta da meia-mentira inerente.
São estes que tentam mediar o fogo com o fogo
Para não contrariarem o fogo:
Como incham de tão razoáveis.
Se pudessem, certamente aboliriam o ponto de ebulição
Por entenderem desnecessária a exasperação da água.


              Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

em "Últimos Poemas"



Vou por vielas sombrias,
Só pensamento e passos,
Com os olhos afundados em espiral.
Que operações do espírito
Se entregam a estes passos?
Vou pelas espirais sombrias
Daqueles que não têm amor,
Vielas sombrias como perguntas sem resposta,
Entranhando-se numa cidade animal,
De desejos mal iluminados.
Vou por vielas sombrias
Onde as paredes são pontuadas
Pelos vultos de putas,
Famintas de mais para viverem sem amor,
Cansadas, entregues, também elas,
À espiral das suas vidas.
Esta noite, como todas as outras,
As vielas sombrias, as putas,
Nada têm de sórdido.
São-me familiares como o pensamento
Que o amor não ilumina.
Este é, afinal, o críptico caminho de casa.

                  Nuno Rocha Morais


sábado, 8 de agosto de 2015

Deixo a verdade mentir mais
E mais, até a mentira ser verdade:
Fundem-se assim opostos em iguais,
Misturados em uma mesma grade.
Vejo então qual verdade a falsa ponte
Que num nós funde os nossos sós pronomes
E de ti faz tangível horizonte,
País onde me acoites e me tomes.
Pela falsa verdade é que eu te falo,
Ébrio de quanto quero acreditar.
Depois, é o teu espanto como um galo,
Um sino ou um alarme a despertar
A mentira do seio da verdade,
Alma que, pela morte, do corpo se evade.


          Nuno Rocha Morais

domingo, 2 de agosto de 2015

Apresentação

Acordei e era noite:
Por ela me chegaram as primeiras manhãs.
Já não ouvi as últimas palavras
Ecoando no útero da fábula,
Antes de os animais se calarem para sempre
Ou de começarem a falar uma linguagem
Que a nossa babel não pode entender.
Na escuridão dela, sem medo do escuro
Terei pisado a erva do paraíso;
Se pisei era quente, de um calor humano.
Já não vi anjos ou deuses ou serpentes.
Não conhecia o sabor da maçã:
Não tinha memória de nada.
Não me lembro do sabor inocente do leite,
Nem depois da água fria do baptismo.
Desci por este sangue,
Mas não saberia dizer exactamente
Quando, em que conjunção do tempo,
Comecei a existir. Talvez só ela possa.
Ela já foi alta e agora é pequena:
Os meus olhos cresceram,
Mas ela não mudou.
A sua voz encontra em mim
Os mesmos lugares, os mesmos jardins,
Para onde caíram os pássaros do Paraíso,
Que se recomeça em qualquer lugar,
Os jardins onde se senta, talvez um pouco mais cansada –
Os jardins estarão talvez mais longe.
Subimos a corrente, trago-te pela mão,
Para te revelar o segredo último,
Embora te diga apenas:
“A minha mãe”.


Nuno Rocha Morais




Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...