sábado, 30 de dezembro de 2023

Existencialismo

Nasço.

Não me ergo da mão de Deus

Nasço do fundo do sol,

Das dobras da terra

Dos recantos do céu.

Nasço completamente nu,

A nudez nua.

Será a idade feiticeira

Que me construirá,

Serei eu que construirei a idade.

Construo Deus,

Construo o pecado por entre os dedos

E os pensamentos.

Construo a minha morte,

O livro que se fecha sussurradamente.

A página como uma clepsidra

Onde a morte é a gota do último suspiro.


Nuno Rocha Morais

(Parabéns pelos teus 50 anos, meu amado filho)

domingo, 24 de dezembro de 2023

Uma janela friamente aberta,

Memória.

O tempo sai de um cristal

E vem animar as estátuas

Que juncam o esquecimento,

Toca-lhes e elas falam.

Será possível que tanto tenha ficado

Dos tempos destruídos?

Agora, como uma gaivota,

A memória voa sobre tudo isso,

Tudo vê pela distância imensa,

Não toca em nada,

Vê, apenas, vê,

Um ver que perfura.

Há uma respiração que sangra,

Nomes que acordam

E se arrastam, insones

Em ebulição

Pela melancolia.


Nuno Rocha Morais
 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Tão bem me conheces.

Da altura dessa ciência,

Dessa lucidez diurna

Que sobre mim alimentas,

Dessa transparência em que me tornas

Dizes: o que está realmente longe,

O que é verdadeiramente distante,

O que dói porque infecundo,

O longe real é o que está perto

E não conseguimos ver.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

domingo, 10 de dezembro de 2023

Da sordidez


Sórdida é a surdina sobre nós,

Sórdido é estarmos enterrados

Vivos a horas que são ratos.

Sórdidas são as vozes à nossa volta

Que de nada sabem

E a ironia de coincidências

Que conhecem tudo.

Sórdidas são as despedidas em público

Só de palavras insípidas,

Sórdido é nunca termos tempo,

Sórdido é o lodo

Onde tudo se desencontra e venda

E cerra os dentes, ensurdecido.

Sórdido é o desespero escondido,

Mas nada em nós é sórdido,

Nenhum amor é impuro

Na forma de se urdir. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 3 de dezembro de 2023

            Os nossos mortos sabem tudo sobre nós:

Conhecem as nossas palavras, as nossas almas

Por dentro, porque aí vivem,

Conhecem as bolsas de reserva,

As traições e as falsidades,

Conhecem até o que sobre eles

Nunca sentimos ou só começamos a sentir,

E por remorso, demasiado tarde.

Sabem tudo sobre nós, os nossos mortos,

E resta esperar que nos perdoem

            O pouco que somos, e tantas vezes falso. 


        Nuno Rocha Morais

        (Poemas dos Dias 2022)

domingo, 26 de novembro de 2023

É o nosso primeiro crepúsculo.

Sobre o mar, a noite começa a ser

Uma espécie de possibilidade.

A tua mão escreve com as ondas 

Nervosos postais,

O teu cabelo esvoaça ao encontro da brisa.

Juntos aqui, junto ao mar,

Quem é cada um de nós,

A que outro se mistura,

Com o ocaso, a brisa, o rumor?

Continuas a escrever.

Em mim pousa a profunda calma do mar,

Há feridas antigas que voltam para dentro,

E desaparecem, não deixando sequer cicatriz.

Ouvi-te realmente dizer

Que esta é a paisagem de seres feliz?


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)
 

domingo, 19 de novembro de 2023


A alma é inconveniente,

Põe os pés onde não deve,

Diz o que não pode,

O resultado és tu, multiplicado,

Dividido, despedaçado, exponenciado

Em traições que cometes

Sem muito bem as explicares,

Mas és tu. Cabe-te encontrar

Sempre novas coisas a perder,

É assim que vives para não ficares

Completamente vazio.

Hoje, quem morre na autobiografia

Já não és tu, conseguiste ainda escapar,

Mas só ainda. Aproveita.

Depois uma fruteira, uma mesa de vidro

Baça de tantos riscos

E o teu rosto. Quem pensas que és

Para julgares que Deus te ignora?

A náusea, a náusea, como é moderna,

Como chega já a ser filosofia,

A enviscar a carne, os dias,

Que privilégio, a náusea.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

domingo, 12 de novembro de 2023

A chuva traz o norte

E sinos de narrativas tímidas,

Fulgentes aos sentidos insensíveis.

A noite atenta na gaguez das ondas

E o sal traz pequenas garrafas de mistérios,

As algas albergam enigmas.

Nos rostos dobrados, rostos duplos,

Que urge domar,

Nos objectos, uma vida imóvel,

Mais uma vida escrita com pó.

O poeta tem de ouvir,

Decantar cada coisa no silêncio

E depois cantar,

Tecer metáforas

Como quem tece janelas,

Como quem ergue a paisagem

Onde a luz é um enigma.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022) 

domingo, 5 de novembro de 2023

Venenos

O corpo habitua-se a certos venenos

Inoculados pelo espírito,

Mas não sofre menos por isso:

Palidez, sangramentos, sezões,

Ardores, convulsões, náuseas, asfixia.

Deixarão algum dia de fazer efeito

Uma secreta livraria em Londres,

Um hotel em Lisboa,

A luz nervosa e tensa do Porto,

Uma fotografia em Florença?


Nuno Rocha Morais

(poemas dos dias 2022)

domingo, 29 de outubro de 2023

Não entendes esta tristeza

Que, subitamente, me queima a voz

E rapta os meus olhos para a sua distância.

Vou, então, procurar a melancolia do Porto,

De que às vezes me falas e dizes que não gostas,

Vou procurar os recantos e sombras

Que a solidão visita e onde se demora,

Certas ruas furtivas, quase secretas,

Ruas quase conchas,  

Porque as ruas no Porto não conduzem,

Mas fogem, entranham-se, estreitam-se,

Fogem em pequenas vielas sombrias.

Vou procurar a melancolia do Porto,

Que está em todo o lado,

Na humidade antiga, no frio cinzento,

Nas tardes de um verão indeciso, fustigado,

Até no riso dessas crianças

Para quem o mundo todo

Não vai além das pontes e do cais.

Não preciso de a procurar,

À melancolia do Porto:

A tristeza que não entendes correu para ela,

Desaguou já na confiança de antigos conhecidos.

Posso ficar a sós com a melancolia do Porto. 


Nuno Rocha Morais


domingo, 22 de outubro de 2023

Mudança

 

O meu velho relógio,

Aquele que assistiu à infância,

Que consumiu as horas felizes,

Parou.

 

O meu velho relógio é o local

Onde o tempo é uma sombra vazia,

Onde os dias são velas arriadas.

      O meu tempo é agora outro. 


    Nuno Rocha Morais

    (Poemas dos Dias 2022)

domingo, 15 de outubro de 2023

Quadro



O crepúsculo demora-se a esboçar

Nos longínquos céus tons impressionistas.

 

O dia termina e deixa ao relento 

Cachos de cadáveres,

Homens e cavalos de olhos vazados 

Por uma expressão vazia, polar.

O sangue já se cansou e parou de correr.

 

O ar, cortado todo o dia 

Pelas lâminas dos gritos,

Pelos gritos metálicos das lâminas que se encontram,

Pelo ódio a que outro ódio responde,

É agora plácido, pacífico.

Foi precisa a morte de todos estes homens

Para que houvesse paz.

 

E nenhum destes que aqui caiu,

Sorvido inteiro num esgar de dor,

Há-de encontrar o descanso

Da vitória ou da derrota:

Para os mortos só há a morte. 


Nuno Rocha Morais

Poemas dos dias (2022)

domingo, 8 de outubro de 2023

Noções de Linguística Aplicada


Um sujeito de bruma,

Um agente chamado poeta

Que rema contra os rumos,

Um predicado múltiplo, estilhaçado,

Precário e eterno,

Um retorno a lado algum,

Memória do imemorável,

Semente de uma qualquer consciência afogada.

Objecto directo como um polvo de cores,

Um relâmpago de gestos,

A fugacidade de uma permanência,

A superfície como um buraco

Esboroando-se lenta, lentamente.

Objecto indirecto a amada,

Incerta, distante, onírica, imaginada,

Próxima, terna.

Obliquo, um complemento circunstancial de silêncio,

Um tempo construído nas palavras,

Um modo mutável, quase miragem.

Um meio de voz, a voz profanando,

A causa, a sede desesperada das estrelas invisíveis

Mas nítidas, e este é o fim,

Porque fim não é síntese, não é completude

De nada ou ninguém.

Sem companhia, um sujeito transforma,

Faz emergir da estrutura de superfície

A estrutura profunda

Destruindo a gramática do pó,

Destruindo linguísticas, sintaxes, morfologias,

Queimando as palavras hieráticas,

Mantendo apenas viva na lembrança a arte de esquecer.



Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos dias - 2022)

domingo, 1 de outubro de 2023

Assim vivo

E procuro desesperadamente o meu destino,

O caminho certo,

A direcção tutelar,

A safra útil.

Vivo em busca do destino

Para evitar os momentos adversativos

E condicionais,

Os terríveis “se’s” que suspendem

Os passos e os sonhos.

A mim o meu destino,

A mim a minha morte

                                      De uma vida cumprida.


Nuno Rocha Morais
 

domingo, 24 de setembro de 2023

Temos apenas os sonhos

Em que somos reais

Da face visível da lua.

Porém, talvez do outro lado,

Tu me ames

E o crepúsculo desabe sobre as águas

Plácido, entregando-se

Numa certeza feliz.

Assim também nós,

Dentro dos corpos buscando a ceifa

Em lunações maduras,

Estações humosas.

Talvez do outro lado da lua

Os regressos e os caminhos

Já não estejam desencontrados,

Talvez do outro lado, talvez aí.

No entanto, esse lugar

Está no centro do tempo que morre

Sob o tempo em que vivemos.


Nuno Rocha Morais

 

 

  

quinta-feira, 14 de setembro de 2023


 Tu e eu – isto, sob o sol imperturbável,

As noites mais longas, os dias mais inúteis,

E mais nada, só isto, sem elegia,

Tudo lentamente engolido pelo passado

E, sob a leve película da memória,

Quando mais se diria de água,

Afundam-se contornos indistintos, esbracejando,

Tu e eu, enquanto nos habituamos

À nossa condição de náufragos – e afogados.

O amor foi como uma carta,

Igualmente frágil, amarrotado,

Extraviado, deixa o desespero

À cabeceira do fim, que está atrasado,

Se demora, talvez nunca chegue.

Há afinal tanta coisa que não acaba,

Tantas cartas que se continuam a escrever

Muito depois de a mão ter detido

O seu percurso, muito depois de o campo

Estar lavrado, queimado por geada –

Há afinal o próprio amor que não acaba

E murmura tanta coisa que não é sequer memória.

Dirás: viveste afinal quando

Tínhamos prometido morrer?

Não faltei, perjuro, à minha morte,

Esteve sempre contigo.

Que fará de nós o absurdo orgulho

De alta escola, o que de nós

O amor irreparável?



Nuno Rocha Morais

sábado, 2 de setembro de 2023

Em xistosa voz sem pranto,

Falo de partir pelo asfalto

Que alguma tarde me ofereça

Para o outro lado do longe:

Acontece que me canso

Da minha irredutível imperfeição,

Destes erros que insepultos,

Erram em mim e me apontam

E me acusam da sua perdição.

Basta, basta. Falo de me evaporar

De deixar secar em mim o homem,

De deixar mirrar toda a humanidade

Para que, enfim, se possam encontrar

Alguns cristais de divino.


Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

 Aprenderei primeiro os meus passos,

A equilibrar-me no silêncio.

Depois, apagarei tudo quanto for sagrado,

Porque nada pode ser sagrado,

Pedirei vento para apagar círios

E pedras para apagar pálpebras

Embriagadas de fé sem razão.

Caminharei, em seguida, junto à praia,

Aprenderei a construção do fogo

Que o mar traz no seio do seu sal,

O fogo na boca, sobretudo na boca.

Irei depois para ti,

Com o meu nome quase vulto,

A carícia quase rumor

E a voz uma noite escuríssima,

Com a lua obnubilada.

Envolto em tanta treva,

Iluminarei, então, toda a nudez oculta.


Nuno Rocha Morais

domingo, 13 de agosto de 2023

 

Pelo poema ressoa,

Cava, a dor do mundo,

A densidade de um excessivo haver

Ou o peso de tanta falta.

 

Nuno Rocha Morais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

 Quem és, ó tu

Que povoas o meu verbo?

Presença de um espelho,

O verso caminhante

Que consigo mesmo dialoga?

Quem és? Um sinal dos deuses,

Um chamamento, o arauto

Alguém sonhado?

Quem és, ó tu

Que iluminas o discurso,

Sereno ouvinte,

Paciente estação?

Serás tu o poeta que todo o verso

Na sua torrente cria?

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Viagem


A noite cai como uma carta.

Viajo no comboio, viajo na noite,

Viajo dentro de mim, pensando-me.

O comboio galga os minutos da distância

E a natureza que, recusando-se

A ser vencida pela máquina

Corre sempre, perseguindo-se a si própria.

Paisagens de sombra e a imaginação delas sobrepõem-se.

A noite cai como uma carta

E perco-me na sua boca

Aberta e negra no horizonte.


Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de julho de 2023

Vilnius no fim do Verão

 


É a primeira imagem da nova Europa –

Assim lhe chamam, mas esteve sempre aqui –

Imolada, renascida.

Vytautas, Mindaugas, Barbora Radvilaitè –

A espada e a beleza, a astúcia e a graça.

Aqui, o Verão, mesmo o fim do Verão, é livre ainda,

Corre pela tarde que vem do sânscrito.

As torres acordam com a noite.

O céu esteve muito tempo enterrado,

Mas quando passamos pelas estátuas ao lusco-fusco,

É quase possível sentir a formação de um sorriso,

Como se dentro delas influísse ainda

A instilação de sangue e pó que vem no vento.

A terra bebeu os mortos até à última gota

E devolve-os agora no esplendor do Verão.

Os bosques só crescem nos países livres

E isto não precisa de verdade para ser verdadeiro.

O Inverno vai chegar, mas o Verão não tem medo

E, em Setembro, é ainda ouro, âmbar, espelhos.

Acabou a indiferença da arquitectura,

Agora sensível ao Verão e à luz,

Como será à neve e ao vento.

Uma cidade de pálpebras

Obstinadamente cerradas

Pela indiferença,

O horizonte cortado rente.


Nuno Rocha Morais

 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

 Se é possível percorrer um sonho,

Seja então pelo interior pobre

De um grão de café ou cacau,

Numa estrada serpenteando

Por entre bananeiras e barracos ocultos

Pela folhagem voraz.

Se é possível percorrer um sonho,

Seja por uma marginal humilde

Junto a uma enseada,

Com toda a gente a acenar,

Seja um sonho tão real

Como o mar e os tubarões coloniais

Ou a pobreza de uma gota de água

Em que reside toda a libertação.

Se é possível tocar um sonho,

Seja esta chaga luxuriante,

E assim se toque e se creia

Na ilha de S. Tomé,

Gota de chuva, grão de cacau ou café.


 Nuno Rocha Morais

terça-feira, 27 de junho de 2023

Do cromossoma cedo o poema

Enflora na voz

E logo eu lamento tê-lo perdido

Pois que nas palavras 

Ele se perde de mim,

Já não tendo criador

Mas criando-se.

Os poemas resultam da necessidade crónica

De perder os dizeres que em mim erram.


Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 22 de junho de 2023


Sou, às vezes, a última hora de um homem
E preparo-me para morrer

Encostando ao queixo de adulto

Joelhos de criança

Quebrada por fábulas vazias –

Casas abandonadas,

Pessoas mortas,

Amores ínvios.

E algo em mim pede:

Desiste, por favor, de existir,

Ignora a minha fome, a minha sede,

Leva-as no fogo que se extingue,

Na minha lava que arrefece.

Mas o caminho para ti,

Ainda que nada de ti se adivinhe,

Continua. E eu continuo. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 18 de junho de 2023


Estar longe, muito longe,

Suspenso em qualquer instante,

Em qualquer hora imóvel

De um dia feriado,

Estar atado a uma estação imperfeita

Que os lugares renegaram

Para renascer...

Estar longe, muito longe,

Num sono espesso, austero, cru,

Inatingível à escalada dos estímulos,

Adormecer como as pedras,

Ser, como as pedras,

A forma da distância ou alheamento,

Adormecer longe, muito longe

De forma que quando me arrancaram

Às entranhas do sono

E me perguntassem quem sou e onde estou,

Eu não soubesse responder.


Nuno Rocha Morais 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

 


A morte em si não é terrível

 Pois que se cala dentro de si própria.

 

Terrível é o reflexo das suas águas

Nos rostos dos vivos,

Contorcidos de choro e dor,

Mãos tornadas extremos da angústia.

 

São calmos os mortos,

Abandonados em si,

Transporta a dor,

Vencida a morte,

Que apenas dura um instante,

Além da morte, estende-se o inominável.

 

Não a morte não é terrível:

Terrível é a reacção da vida à morte,

Terrível é a vida confrontada com a morte.


Nuno Rocha Morais

(quinze anos depois da tua morte, tento procurar consolo, nas tuas palavras, para esta imensa saudade de mãe)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A distância ignora o céu,
Posto que ao fundo da distância

Está apenas renovada distância

E não o céu.

Como aventureiro na distância

O céu busca,

Também eu demando a isocronia

Entre quem me sinto

E quem me penso.

Como o rio que igualmente se reparte

Entre duas margens,

Dois diversos silêncios,

Também eu, na nudez do meu centro

Me reparto entre dois inimigos –

Sou como quem combate.


Nuno Rocha Morais

sábado, 27 de maio de 2023

  

É muito útil ter estado em vão,
Ter sido em vão, ter – claro – amado em vão,

Muito claramente em vão.

Saber que é vão o vento nas árvores

E vã a vida dos corvos pelos campos,

Que as mãos nada podem sobre o reino dos olhos,

Que nada mais há a dizer

Quando as mãos falam

E ficará tudo dito.

É muito útil falar em vão,

Para logo aí, se começar a desmantelar

A vanidade da noção do vão.


Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Justificação

 

É esta poesia amarga

Que me tortura e afaga.

 

É a poesia de desdita

Que me implode e me grita.

 

É a poesia auto- de- fé

Que me mata e põe de pé.


Nuno Rocha Morais

domingo, 7 de maio de 2023

             Stabat filius

 

E era a mãe que sofria. Cruz e noite.

Fechava-se, o seu riso diluía-se.

O filho ouve na voz da mãe

O lastro escuro de uma resignação,

Sulcada por veios grossos de amargura,

Tudo afinal a apodrecer em enganos –

A mãe coragem está cansada, tem medo,

E a idade do medo é sempre menina,

E eu tento fazê-la rir,

E espero ter guardado em mim,

Depois de anos a fio com esse riso a pegar em mim,

Um riso suficientemente poderoso

Para, com uma gargalhada ex machina,

Agora a salvar. Dorme, mãe, dorme um sono pequenino.

Revoada potente e luminosa, hoste dourada

Percorrendo corredores, recantos, desvãos,

Onde costumam esconder-se todos os medos,

Desencantando as sombras dos seus terrores.

Mãe tamanhinha, de idade menina

Ingénua, empreendedora, curiosa, dinâmica, incansável,

Determinada. Não suspires, mãe, de tanto mudar cansada,

Pela expiração da mudança.


Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...