domingo, 29 de agosto de 2021

Arqueologia


São novos e velhos.

Vêm recolher as cinzas das cidades

Procuram remexendo cuidadosamente

O pó de tudo o que passou,

O verbo em escombros,

Palavras e moedas e porcelanas –

Troco que a morte deixou.

Procuram pedaços para compreender

Com os sedimentos

Deixados no fundo do cálice

Da desolação e devastação.

Oxalá haja alguém assim para nós.

 

Nuno Rocha Morais

domingo, 22 de agosto de 2021

Chegada ao Novo Mundo

Lanço os dados da navegação

Para o centro das eras invioladas

O longe é o continente mais imenso

Albatrozes poucos nítidos

Informes suspiros de nuvens

Rasgam a sorte

Que tempo levantam que safra

Que destino?

É um oceano que me cega

É este ar imenso livre caverna

És tu que aí te escreves

Cuneiforme doçura

É para aí que a terra se concentra

Numa ilha num pais

É para aí chegar

Que atravesso o erro das estrelas

Apontando apenas as coordenadas de mais vazio

E para aí chegar que atravesso estas sombras

Heras eternas culpa da superstição

Venço-me para te vencer

Tu és toda a tenebra e tormenta

Todo o vácuo que ao dar-se tira

Tira o fôlego da alma

E assim que se começa a morrer

E as velas deixam cair a brancura

Atravesso toda a confusão da bússola

O norte o sul o este o oeste

Moram-me nas raízes dos músculos

Os meus braços são o vento a bonança

Só vencendo-me eu te posso vencer

Navego para a tua nascente

Leito da terra édito do sol

Penetro na louca mente abissal

Aventura dos teus olhos

E chego enfim à palavra do teu corpo

Todo o sal na boca

Desvelo a palavra do teu corpo

Novo Mundo

 

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

 

Não há poetas mortos.

Há só leis superiores aos poetas,

Mas que os não retêm nas suas redes.

Um poeta morto

Seria como se a linguagem alígera do sol se apagasse,

Como se cessasse o seu fogoso galope de fogo.

 

O poeta vive sempre.

O poema prolonga-o teimosamente,

Transporta-o da morte

Para o presente, o passado, o futuro dos vivos.

 

Um poeta morto,

      Se tal existisse,

Seria um vácuo nos corações

Das gerações futuras.

 

Nuno Rocha Morais

terça-feira, 10 de agosto de 2021

 

O ano incerto, abstruso –

A Primavera sistemática, completamente

Estrábica, os absurdos tufos da chuva no Inverno,

A arrogância e soberba dos Verões,

A reticência de Outonos imperceptíveis,

E os amantes chorosos, sem estação

Outra para caírem em leitos de folhas

E que acabam por foder em qualquer lado.

O que se pode esperar de um homem

Senão um homem e uma besta?

A incompetência de um espaço desastrado

Que se derrama em toda a parte e nunca chega,

E se estira e se estatela,

Para por fim revelar o seu rosto

E ser o tempo embuçado,

Um tempo que, por fatigada

Mas sempre vertiginosa velocidade,

Nunca chegou a passar

E nunca foi mais nada senão

Uma máscara do próprio espaço. 

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

 No limbo entre o sentir e a inteligência,

Na distância da inteligência à imaginação,

Da imaginação à tinta,

Da voz que dista entre a tinta e a página,

No caos entre a página e a palavra,

O poema desenreda-se

E amanhece.

 

 Nuno Rocha Morais

 



 


terça-feira, 3 de agosto de 2021

                                    “Eu sei

                                      Que  as nossas raízes se frequentam”

                                                Guillevic  

                                             (Trad. de Egito Gonçalves)

 

 

Eu sei, as raízes,

As nossas linguagens

Estendem-se e entendem-se,

Areais sem passos.


 

Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...