terça-feira, 24 de maio de 2022

Nunca a paz

Em que os gestos são tempos estrangulados.

 

Nunca se extingam as conjuras,

O perigo, os inimigos;

A súplica que é o ódio,

Nunca a paz com ninguém,

Gritos desmembrados, sangue,

Dores pendulares,

Nunca a paz serena,

De rosto branco e inertes horas.

 

Nunca a paz de haste morta,

Para que de raiva

A vida espume vida.

 

Nuno Rocha Morais


terça-feira, 17 de maio de 2022

Salmo

Meu Deus, que a poesia me salve, e salve o meu amor.

Que a minha voz ainda seja humana.

Que alguém, cansado do caminho,

Entre no meu coração para dormir.

Que o deserto não seja tudo em mim,

Que algum fruto me seja confiado.

Que a crueza em mim não encontre ninguém.

Que alguma lua seja um segredo meu

E com ela eu possa salvar um forasteiro.

Que o amor não me sepulte.

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 13 de maio de 2022

 

Um rio que é ar

Entre os lábios das margens;

Uma ponte sóbria, certa, segura;

O meu corpo inclina-se ao passo:

Atravesso a ponte?

Além continua o meu destino?

 

À luz silenciosa

Á brisa que inventaria as folhas,

Diante da rumorosa docilidade da água,

Sente-se a presença sem sombra

Da ilusão.

 

Mas o que é que a ilusão sustenta:

A outra margem,

O convite da ponte

Ou a minha inclinação para o passo?

 

Nuno Rocha Morais


domingo, 8 de maio de 2022

 

Tantos séculos de sangue,

Tanto tempo truncado

Entre quatro paredes

Acrescentando-se à treva.

Tanto sofrimento, tantos processos,

Tantas leis, tantos crimes,

Tantas mortes, tantas despedidas,

As asas de tantas cartas

Escritas pelos encarcerados

Que sobre o papel deixam a sua voz de vento.

Tantos amores tornados dissolutos

Tantas famílias arruinadas,

Tantos homens como buracos,

Apenas para saber que dentro das grades,

Se divisa o rosto nu da liberdade,

Essência sensível.

 

Nuno Rocha Morais

 

terça-feira, 3 de maio de 2022

Cá venho eu de palavras ao ombro,

Palavras esburacadas por nelas cavar metáforas.

Cá venho para encontrar nas palavras

O teu corpo, e nele, reunir o teu nome,

Esse brilho ou fulgor imarcescível.

Venho em busca de uma enseada de silêncio.

Cá venho, para acalmar os teus olhos,

Encapelados de terra,

Cá venho, para apaziguar o mar e a noite,

Para fazer do sal um tapete

Onde o amor não transborde.

Cá venho, com o erotismo que pula

De poema em poema, fogo latente.

 

Nuno Rocha Morais


Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...