sábado, 25 de julho de 2015



I.
“Não lhe restam anos”, disse o médico,
Sem fingir pesar, num tom desapaixonado,
Como se falasse de um problema mecânico,
Do lamentável defeito de uma engrenagem,
Mas não mais que isso. Agradeci-lho.
Não me permitiu sequer esperanças
De pequeno porte, não vendo em mim
Mais do que o já cadáver,
De milhões de nós numa tapeçaria.
Não me restam anos, portanto –
Passei a viver contando só os dias.

II.
Milhões de nós, de elos, de passagens –
A tapeçaria de um homem.
Motivos: por exemplo, o cheiro de pedras quentes,
A sensação de uma sensação
Tão tersa como uma corda
Que, vibrada, permitisse agarrar a própria pedra;
O hálito da cal,
O Verão, a leveza de uma cidade
Que se prepara, de tão branca,
Para levantar voo na planura –
Mértola? Vila Viçosa? Que nó?
Mais motivos: o fio do que dizem certas vozes,
Que, conduzidas, também conduzem
À noite de beijos que não passam,
Não se dissolvem, mas antes ecoam nas bocas
E dados, se dão perpetuamente;
Certos perfumes, como o do limoeiro,
Das ameixas, o odor da terra
Que sucede, humoso, à chuva,
Da maresia no nevoeiro,
Do lodo numa ria,
O perfume de mercados
Que começam o dia –
O sabor de nomes
Pargos, percas, besugos, robalos, ferreiras.
Milhões de nós, um homem.
Milhões de nós numa tapeçaria,
As coisas criadas pela memória das coisas.

III.
A hóstia do incógnito –
Como saber se a tua alma é cobarde,
Como temperá-la contra o muito que teme?
Que homem és na extrema do homem?
Possas tu ser-te leve no caminho,
Viaja ligeiro – lembra-te,
Encontra o que puderes de acalanto
Em ti, à tua volta, no sereno,
Não leves na boca, na alma,
Mais do que um salmo,
Não saibas mais do que ser pequeno.

IV.
Nem um talvez, nem meio talvez,
Só um fio de talvez,
Que se batia corpo a corpo
Contra um nem isso –
Às vezes, um grito entrava na refrega
Dado por aquilo que ainda não era
O cadáver de serviço.

Nuno Rocha Morais




domingo, 19 de julho de 2015






Acontece que, quando posso, venho sentar-me aqui, num banco do Jardim de S. Lázaro, ao sol que haja, com pombas e reformados. Ao lado, a Biblioteca Municipal, onde vagueia o espectro do Herculano; no próprio jardim, perpassam versos do Eugénio de Andrade; num destes bancos – já não sei exactamente qual, mas também não tem muita importância -, comecei a ler o Teixeira de Pascoaes, numa improvável, mas só teoricamente, antologia do Cesariny; e, ali, voltado para a rua de D. João IV, está o busto do Camilo, talvez menos irado, por cortesia do escultor, talvez numa cortesia mercenária aos mercadores do Porto, contra as hipocrisias de burgo. Mas este não é um jardim de literatura, por mais que também o seja. Quando me sentia só ou quando quero sentir-me só – não sei se uma coisa decorre da outra e qual o sentido dessa  decorrência - , venho sentar-me aqui, com pombas e reformados, ao sol ao sol que haja, a ouvir o rumor de uma cidade que não sei se foi minha, mas, de qualquer forma, perdi. Houve entretanto anos a separar-nos, a minha vida que se desviou das suas ruas. Julgo, contudo, que sobrevivemos um ao outro, como costuma acontecer aos amantes infelizes. Talvez nunca mais nos possamos encontrar, encontrar verdadeiramente, num desses instantes de reconhecimento absoluto, em que se reconhece até aquilo que não se conhece, pelo menos não conscientemente, em que os olhos vêem tudo e revelam tudo. Talvez nunca mais nos possamos encontrar, mas tão alguma vez voltaremos a ser estranhos. É quase impossível dizer o que representa para mim esta cidade, este canto dela, este jardim. Amei esta cidade como se ama alguém de relações cortadas com a mãe – muito, mas numa surdina dolorosa e dorida.

Nuno Rocha Morais


sábado, 18 de julho de 2015








Uma vida parece pouco,
Reduzida a três malas.
Talvez me possa levar
Um pouco deste céu,
Talvez alguém ofereça
Um búzio, que em si contém
Uma súmula do mar.
Parece pouco e ninguém
Poderia imaginar a súbita importância
Do voo oblíquo de uma ave
Em frente de uma janela
Ou os ruídos tão familiares
Que vão atravessando 
A espessura do sono.
Mas é isto que não se conforma
Em três malas e é isto –
Tão definitivo e tão pouco –
Que nega a pretensão de unidade
De uma vida, a que faltarão
O modo e a linha melódica
De certas falas.
Na bagagem, tudo amortalhado
No repouso de restos.

                Nuno Rocha Morais



sexta-feira, 10 de julho de 2015

(Para a S.)

Sempre que me vias,
Eram os teus lábios
Em festa de riso,
Os teus olhos infestados
Por uma alegria verde;
  Era eu a sentir-me grande,
A sentir a unanimidade
De ser inteiramente eu,
Eram as minhas feições calcinadas,
Que adquiriam alígera coloração
De ser eu reconstruído.
Sempre que me vias,
Era eu surpreso pela correspondência
Entre a tua alegria
E a minha imagem.


Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 6 de julho de 2015

No teatro



A actriz liberta o texto
Que se dirige a eles, no silêncio,
E os rodeia até serem dele cativos.
O texto saberá o momento
Em que goza de entrada franca.
Depois, entra, abre portas na escuridão
E aí deixa palavras, sem nunca as perder,
O texto que agora, no silêncio,
Regressa à actriz e cuja voz ouvimos
Como vinda da nossa própria boca.


Nuno Rocha Morais


domingo, 5 de julho de 2015

Desenhos animados


As emoções começam por ser
Uma memória de imagens:
Imagens o bem e o mal,
A alegria, a amizade, o medo.
O meu primeiro filme foi, creio, “Mogli, o menino da selva.”
Lembro-me da pantera fiel, Baguera,
Do poderoso tigre Shere Khan.
Há emoções que me fitam com um rosto de madrasta,
Outras mordem maçãs envenenadas;
Também o meu coração se picou num fuso
E esperou, paciente, o príncipe que eu próprio era,
Se há alguma verdade nisso de Eros e Psique.
Muitos anos volvidos, na pele do Monstro
Amei a Bela,
Convicto de que o meu amor era já rei.
Muito de mim se fez real
Nessas existências coloridas.
Nas primeiras imagens vieram
As primeiras emoções, ou talvez vice-versa
Ou talvez os dois fossem simultâneos.
Eu, entre imagens e emoções,
Também era um menino da selva
Primeira visão da alma
Amamentada por uma loba.


Nuno Rocha Morais 

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...