sábado, 29 de agosto de 2020

É o fim do mundo.

Mas não o apocalipse.
Não a justiça vingativa.
O fim do mundo é outro:
Os filhos que cresceram
E já não têm infância;
O crepúsculo que chega
Cada vez mais cedo,
O leste que desabrocha
Cada vez mais tarde;
O silêncio cada vez mais seco,
Cada vez mais sem amor,
Cada vez mais sem solidão;
O corpo saqueado,
A idade que já nada devolve,
A memória a um canto da sombra,
Chorosa, chorosa.

O fim do mundo
No mundo que continua
Quando nós, porém, não.


Nuno Rocha Morais (Poemas Sociais)

segunda-feira, 24 de agosto de 2020


Também os nomes não morrem,
Mas transformam-se
E, constantemente, emergem
Da morte que não possuem,
Banhados noutras formas.
Por isso, poderás negar-me,
Dissolver-me nas viagens
De pássaros agudos,
Porque eu volto,
Volto com o sol do sul,
Arrastado nas turbulentas águas
Das migrações,
Volto com o vento jovem,
Liso e límpido
Que chama Março
Da sua hibernação no tempo.
Diz folhas, diz dunas, diz frutos,
O meu nome nasce desses nomes,
O meu nome tem raízes nesses nomes,
Diz dedos, diz fragas, diz águas,
Diz ondulação, diz chuva, diz curva...

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

TEMPLO DE DIANA


Os ombros das colunas respiram,
Finalmente puros,
Libertos de um céu
Que os séculos foram subindo.
Por vezes, entrevê-se no vento
O rosto outonal de Diana,
Que logo se eclipsa,
Surpreendido no banho de real,
Que logo se recolhe à lateralidade
Que caracteriza os deuses.
No chão, entre o pó,
Na posição de escombro,
Jaz o destino de todos os Impérios.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

sábado, 15 de agosto de 2020

A água corre, consoladora,
E o vento, e a linha
Dos dias e das noites.
Nenhuma semente, agora metálica,
Perdeu o acaso
Que serve como destino.
As cidades tiquetaqueteiam,
Cada vez mais velozes,
Mas nada avança
Nesta natureza inútil,
Neste tempo que se recusa
A ser História.
Muda o mundo e ninguém vê
Como, quanto, porquê.

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 13 de agosto de 2020


A luz mineira dos candeeiros públicos 
Torna pastosa a noite
As sereias da sombra acenam
Com os seus cantos de cores berrantes,

Com os corpos.
As sereias são mulheres semeadas na noite, 
Terrenas, deixando as serenatas mortas
Nas cordas agora intangíveis.
São as mulheres da máscara,

Que envergonham as musas neoclássicas de Ingres 
São as mulheres irmãs das Meninas de Avinhão
Mulheres fragmentadas, mulheres parciais, 
Mulheres para quem a terra
É apenas o chão. E não o será? 

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

domingo, 9 de agosto de 2020

Círculo



E as armas calaram-se, 
Dando lugar aos sinos
Que largam flores nas aldeias. 
Mas, só enquanto as armas 
Aclaram as roucas vozes
Para calarem os sinos. 


Nuno Rocha Morais (Poemas Sociais)

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A MULHER DE LOT


Enquanto desfias o rol de recriminações,
O pergaminho de culpas que enchem
A terra e o céu, que empestam o ar,
Cada palavra rasura-nos um pouco mais
E vais-te gradualmente convertendo
Numa estátua de sal,
Mas de costas voltadas para aquela que foi
A tua, a nossa cidade.
Foi aqui que os quadros de Botticelli,
Os versos d’ A Divina Comédia,
Se fizeram cúmplices crípticos
Para trocarmos olhares, segredos.
Mas, ao fim e ao cabo, não nos mostrámos
Talvez gratos o suficiente
Pela propalada oxitocina, pelo oxímoro
De um amor que mata e não morre.
E, agora, aqui estamos, como se a lua
Me espremesse sumo de limão nos olhos.
E tu te convertesses em sal
Às portas da cidade que abandonamos,
Empestada de culpa.

Nuno Rocha Morais (Galeria)

sábado, 1 de agosto de 2020

 
Pela estrada amena, saem-nos ao caminho,
Como salteadores ocultos entre os fenos altos
Dois ou três versos do Canzoniere
Gravados numa placa de mármore branco –
Passos reais na passeada ficção
De uma mulher encurralada num ideal,
Eterno muito, feminino pouco.
Continuamos a caminhar entre árvores
Até ao castelo onde vão celebrar
A missa campal para a bênção da floresta.
No pátio, o sermão do padre
Sobre um reino que não é deste mundo,
Responde, como em desafio, este mundo
Com o rumorejar de abetos e águas,
Crocitos, os pés de crianças arrastados no cascalho,
A instalação sonora que se esganiça,
O bramido de trompas de caça.
Depois, o padre brande o hissope
E asperge o bosque adjacente,
De onde sopram as primícias do Outono,
E ouço-te casquinar de manso ao meu lado.
De repente, as nuvens mudaram de ideia,
E a sua realidade, em animação suspensa,
Abateu-se sobre nós em bátega.

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...