quinta-feira, 25 de abril de 2024

Deram-nos uma liberdade de cravos

Desenterrada dos mais sombrios tempos –

Crónica da memória –

Liberdade pisada, amarfanhada

Nas profundezas das mãos 

Já lucífugas do temor;

 

Deram-nos esta liberdade,

Aragem exalada por certas vozes –

Zeca Afonso, “Grândola”.

Energia borbulhante nos pulsos,

Ergueram-se do ser fantasma,

Fachada já fendida.

 

Esta liberdade que nos deram

Celebrada em pombas transparentes

Nos fugazes dias orquestrados pela euforia.

Mas a liberdade que nos deram não é nossa,

Embora nas nossas veias seja ela a alígera

Que nos concede direito à claridade.

 

Não é nossa a liberdade que assenta em símbolos

Que são na alma dos nossos pais ecos

De insubmissão e vitória,

Pois que cada geração tem de esburgar

O seu querer, a sua liberdade de navegar

E buscar a sua liberdade.

 

Geração sem liberdade conquistada,

Rosa gerada submergida na lacuna

De estar ainda por abrir.


Nuno Rocha Morais
 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Como dói o ignorado humano.

Vou, então, procurar

Algo semelhante a ternura:

O vapor de um chá,

A lembrança de um papel antigo no bolso,

O que resta de vento lá fora.

Um mar sem praias ou precedentes,

Viagem pura, amor sem margem,

Corrente que mergulha na água esgotada.


Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos Dias 2022)
 

domingo, 14 de abril de 2024

Encruzilhadas


Brisas de figuras,

Cada uma leve direcção

Onde uma sabedoria se desvanece,

Onde uma sabedoria nasce.

No espaço que a espaço se reduz

E a espaço se ergue

Uma forma toma um conceito,

Como a terra envolve uma semente,

Como a morte à vida recebe,

Como a vida a morte recomeça.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 7 de abril de 2024

 


Amamos de muitos amores

E morremos de muitas mortes.

Somos naturalmente múltiplos,

E múltiplos de nós mesmos,

De muitos que nem sequer sabemos.


Nuno Rocha Morais 

(Poemas dos Dias) 2022 

sábado, 30 de março de 2024

 

Sobretudo não esquecer

Que também foi um homem

E que esse sangue lhe trouxe

As imagens mais violentas,

À luz dúbia, de biombo,

É impossível saber que rosto fita:

Imolação ou redenção?

Talvez aqui se entrelacem 

Para o jogo de sombras chinesas.

Não esquecer que foi um homem

E que a laceração da carne

Nunca lhe foi abstracta

Nem, tão pouco, o amor esmagado

Contra as paredes da alma.

 

Será talvez uma fábula,

Um homem que fala

Por detrás das suas palavras

Quando deveria estar silencioso

No que lhe resta de deus,

Mas fala em vozes sobrepostas

E a bifurcação é o mesmo caminho

Na sua dor em fogo lento.


Nuno Rocha Morais


 

domingo, 24 de março de 2024


Sofro esta turbulência cega,
O choque de astros e pássaros e ventos,

O redemoinho de folhas e silêncios.

Nada sei do que estas saudades desenterram e choram,

Silhuetas escuras que passam e voltam

E voltam a passar, no circuito fechado

De uma tristeza que aboliu todas as lágrimas –

Queimadas por dentro pela nascente –

E se concentra apenas em si mesma,

Sem se multiplicar, embora pudesse ser

Esta rua, este vento, estas folhas e o silêncio

De um mundo desmantelado.

Que me quereis perpétuas saudades?


Nuno Rocha Morais

domingo, 17 de março de 2024


“Era uma vez”:

Aqui começa o tempo anulado,

O oásis, a cidade

Que surge perante a caravana

Vergada pelo peso do deserto

E do céu nítido.

Aqui começam as danças verdes,

Aqui começa a escorrer a origem.

Aqui “era uma vez”:

Aqui a gárgula das palavras,

Aqui começa uma lenta leveza,

Um esvoaçar de espanto,

Aqui começam os alfabetos

Das línguas como tapetes voadores,

Casas de açúcar, florestas.

Aqui começa a voz nascida

Dentro de tudo: animais, casas,

Árvores, águas, ventos.

“Era uma vez”:

Aqui se sepulta o pensamento,

Aqui se combinam os quatro elementos

De não se existir

Na redoma de uma vida caducifólia.

“Era uma vez”, “Era uma vez”:

Aqui se abrem os céus do voo,

Aqui se recomeça a alquimia da infância,

Aqui se aboliu toda a idade.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos dias (2022)

 

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