sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Paula

Manhã, manhãzinha vem pela estrada, vermelha, sorridente, cantarolando. Chega com a manhã.
Na aldeia, ninguém sabe de onde veio a Paula, não se lhe conhece família, marido, pais, filhos, ninguém. Existe por si. Desde sempre: ninguém a criou. Ou é criada todos os dias, nasce com a manhã.
Da Paula só se sabe que é louca. Assim dizem os sãos. E ela quer ser louca. Procura a loucura no vinho. A loucura, dizem, nasce do encontro entre o vinho e o sangue da Paula. Passa algumas horas por dia na taberna. Os homens acham-lhe graça. Pagam-lhe copos, dão-lhe garrafões. Sabem que embriagada a Paula tira a roupa. Riem-se e, depois, pia, catolicamente, dizem “Pobre alma”. E a Paula ri-se com eles, como se longe de si mesma.
Mora no meio do monte, num lugar a que chamam “O Buraco”, uma velha casa meio arruinada, abandonada até pela memória, pelas sombras do passado.
A Paula repovoou um pequeno quarto: um retrato do Papa, um colchão, os garrafões, os gatos que ela ama, a sua loucura. A Paula chama-lhe agora o Solar do Inca. Fala dos diamantes que só ela conhece. Fala da gente que a visita. “Hoje, tenho visitas”.aperalta-se nos seus trapos, depois de se ter lavado na fonte, nua, com as beatas puríssimas a rosnarem entre dentes – “Porca”. A Paula não liga. Faz a sua vida a que ninguém chama vida. Só miséria. Mas ela, louca, parece feliz. Longe de todos. Só perto dos seus sonhos, da sua imaginação, da sua loucura, dos seus gatos. A Paula é feliz.
Mal a manhã acende o tempo, a Paula desce a estrada. Cantarola com o chilrear infernal da passarada, o cantar dos galos, um boi que muge. A Paula começa a ser o tempo. Quando a vêem na estrada, sabem que é a hora x. Certa, a Paula faz o seu caminho para lado algum, azafamada a procurar Áfricas, ouros e ir a festas.

Mas uma manhã, a Paula não desceu a estrada. E três dias passaram. Às gentes da aldeia, a manhã parecia incompleta, faltava-lhes alguma coisa. Alguns homens e mulheres foram ao Buraco. A Paula estava lá, no colchão, entre os seus gatos. Lábios adormecidos em pedra. Lá longe, alguém cantarolava.

     Nuno Rocha Morais

2 comentários:

  1. Só tu, Nuno, serias capaz de imortalizar na força, na doçura e na poesia das tuas palavras esta mulher que guardaste nas tuas memórias de criança...

    ResponderEliminar
  2. Um retrato tão nítido e tocante brotado do olhar puro de uma criança e pintado com as palavras de um Poeta.
    Belíssimo.
    Grande abraço
    Manuela

    *******************
    Paula

    Di buon mattino se ne viene per la strada, rossa, sorridente, canterellando. Arriva col mattino.
    Nel borgo, nessuno sa da dov’è venuta la Paula, di lei non si conosce né famiglia, marito, genitori, figli, nessuno. Esiste di per sé. Da sempre: nessuno l’ha creata. Oppure è creata ogni giorno, nasce col mattino.
    Di Paula si sa solo che è matta. Così dicono i savi. E lei vuole essere matta. Cerca la pazzia nel vino. La pazzia, dicono, nasce dall’incontro tra il vino e il sangue di Paula. Ogni giorno passa qualche ora all’osteria. Gli uomini la trovano divertente. Le pagano bicchieri, le offrono fiaschi. Sanno che da ubriaca la Paula si toglie i vestiti. Se la ridono e, poi, piamente, cattolicamente, dicono “Pover’anima”. E la Paula se la ride con loro, come se fosse estranea a se stessa.
    Abita in mezzo alla montagna, in un posto che chiamano “Il Buco”, una vecchia casa mezzo diroccata, abbandonata perfino dalla memoria, dalle ombre del passato.
    La Paula ha ripopolato una piccola stanza: un ritratto del Papa, un materasso, i fiaschi, i gatti che a lei piacciono, la sua pazzia. La Paula la chiama la Dimora dell’Inca. Parla di diamanti che lei soltanto conosce. Parla di gente che le fa visita. “Oggi, ho visite”. Si pavoneggia nei suoi stracci, dopo essersi lavata alla fonte, nuda, con le beghine purissime che mugugnano tra i denti – “Porca”. La Paula non lega. Vive la sua vita che nessuno chiama vita. Solo miseria. Ma lei, pazza, sembra felice. Lontana da tutti. Solo vicina ai suoi sogni, alla sua immaginazione, alla sua pazzia, ai suoi gatti. La Paula è felice.
    Non appena il mattino attacca il tempo, la Paula scende in strada. Canterella in mezzo al cinguettio infernale degli uccellini, al canto dei galli, al muggito del bue. La Paula sta cominciando ad essere il tempo. Quando la vedono per la strada, sanno che è l’ora x. Sicura, la Paula segue il suo cammino verso qualche posto, frettolosa in cerca di Afriche, ori e per andare alle feste.

    Ma un mattino la Paula non scese instrada. E passarono tre giorni. Alla gente del borgo, il mattino pareva incompleto, mancava loro qualcosa. Alcuni uomini e donne andarono al Buco. La Paula stava là, in mezzo ai suoi gatti. Labbra fattesi pietra nel sonno. Là distante, qualcuno canterellava.


    (tradução italiana de Manuela Colombo)

    ResponderEliminar

Onde estais versos magníficos, Cantos de fachada belíssima, Naves de silêncio imponente, Palavras que ultrapassam o tempo, Onde estais, que ...