sábado, 14 de junho de 2025


As contracções,

A ira de Deus,

O sangue da maçã mordida,

A serpente enroscada

No pescoço que aperta

E aperta,

A fractura da identidade,

A deriva pelo medo.

A luminosa e uterina treva

Que se desvanece

E dá lugar à escuridão da luz

Do primeiro dia.

Criado para apenas perceber

O lacunar silêncio

De tudo o que se perdeu.

 

Nuno Rocha Morais

sábado, 7 de junho de 2025

Instruções para a morte

 1.

Imortal 

É toda a vida 

Que não temos.

 

2.

Sem ensaios

A nossa morte.

 

3.

Suspeita quando o teu corpo

Te disser que é só sono

E o sono, sempre,

Que ainda não é manhã.

 

4.

As formas do tempo:

Coisas, nós,

Princípios e fins.

 

5.

Rasgámos

A seda do eclipse.

A treva é ainda maior. 


             (Aparentemente, um poeta é uma entidade que gosta da morte.  

            A cada poema, parece que renasce a contragosto, parece perguntar: para quê, porquê perturbando-me, criando-me? A resposta, ainda ninguém a ouviu. Ou ouviu-se variamente e a verdadeira, ou verdadeiras, se as há, estão perdidas nesse transe de confusão.)

Nuno Rocha Morais

sábado, 31 de maio de 2025

(Lisboa)


A pressa desconstrói ritmos,

Cadências à sua imagem.

Deixo-me conduzir

Pelo rancor das ruas

E que a memória seja fera.

Passo pelas estátuas e a sua reticência,

Sei que não sou mais do que isto,

Como tantos outros – um par de olhos

Devolutos, pelo rancor das ruas.

Cada fissura é o meu destino,

Cada desabamento traça o meu curso,

Mas isto não significa que eu esteja escrito.

 

Nuno Rocha Morais


sábado, 24 de maio de 2025

“Green Peace”


Lançar nas palavras

A voz da Paz Verde

Impedir que dissolvam o céu

Por entre as largas gargantas do fumo.

Com as sílabas de cada gesto,

Mas gestos que caibam nas mãos,

Construir a Paz Verde.

Deixar que os pequenos veios 

Da Paz Verde

Irriguem a cegueira do betão.

Algo de raiz pura e animal

Se acende no peito. Será

A Paz Verde? 


Nuno Rocha Morrais

sábado, 17 de maio de 2025


Chamaram-me triste

Mas eu seria tão mais poeta

Se não me tivessem dado título algum.


Nuno Rocha Morais

 

sábado, 10 de maio de 2025









Nos anéis sucessivos da manhã,
A cidade vai crescendo,

Como se criada, emergindo

As casas e as ruas e as gentes

Dos limbos hibernantes da noite.

A liberdade, aqui, não é o vento

Acelerado pelas gaivotas,

Nem tão pouco as águas que findas,

Se transformam, no oceano,

Em tempo sem margens.

Apenas as pedras são livres,

Mudas nos redis das suas histórias,

Tempo sem morte, mas idade,

Eloquência sem palavra. 


Nuno Rocha Morais

sábado, 3 de maio de 2025


Agora vais aprender a estar só.

A olhar para as tuas mãos

Depois de te terem partido

Minuciosamente, um a um,

Todos os dedos, inúteis como gravetos.

Vê como não se dissolveram os teus gritos,

Cravados no ar. Vê,

Vais aprender a desprender de ti

Todo o amor com ferocidade

E, porém, numa perplexidade geométrica

E só poderás entender a perplexidade.

Tudo isto, há muito o adivinhavas,

Há tanto tempo – porque esta

Foi a solidão que em outros deixaste.


Nuno Rocha Morais



 

sábado, 26 de abril de 2025





Esta é a sombra de Deus

E sinto, por fim,

A minha alma, aflante,

Aportando no corpo.

Aqui, na sombra

Onde uma religião se despe,

Sei que sou tristeza reunida,

Chama densa, oculta,

Rio afogando-se 

Sob a ausência da voz,

No caudaloso silêncio

Que em mim ecoa

Como divina resposta.


Nuno Rocha Morais

 

sábado, 19 de abril de 2025

Criei em mim os deuses

Em que não acredito,

Trago em mim o céu e o inferno

E o pecado volúvel

Que não é fronteira entre os dois.

Da forma simples,

Moldei o labirinto

Das lendas, dos segredos;

Trago no verso o súbito lembrar

De toda a mitologia

Que sou eu:

Dividido no fogo de imagens,

Reflexos, ora reais, ora falsos,

De eternos e mortais 

De que o poeta é o mesmo orbe.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 13 de abril de 2025



Tudo o que esquecemos

Em nós se encontra:

Os instantes que fizemos

São, também eles, artefactos,

Alguns que se perderam do tempo.

O que esquecemos

Não se perde, todavia, de nós –

É antes uma memória inversa,

Em negativo, presença codificada.

Mas não importa,

Quem quer que esteja

Do outro lado de nós –

Deus, diabo ou nós mesmos –

Há-de lembrar-se.

Posto que não há destino,

Não é senão a vida em encruzilhadas,

Tu e eu juízes delas.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022) 

sexta-feira, 4 de abril de 2025





A minha voz pode esquecer-te,

Mas não o meu silêncio.

De sofrer por ti fiz a minha casa –

O escárnio e o absurdo

Passam sempre, por mais que durem.

A casa fica.

Que me esqueças é a única morte,

O único deserto.


Nuno Rocha Morais 

sábado, 29 de março de 2025

Visão Heraclitiana


Corola profanando a noite,

A lua.

Se olhares para cima,

Ela pinga-te nos olhos

E, cada vez que olhares,

É outra a lua que pinga.


Nuno Rocha Morais


sexta-feira, 21 de março de 2025

Saga do poeta abandonado

 
Meus sete irmãos partiram,

Cada um por cada dia.

Cada um por cada sol,

À descoberta da terra.

 

Só eu fiquei abandonado,

A chorar de poesia, 

Poesia a cada dia,

Poesia a cada sol. 


Nuno Rocha Morais

domingo, 16 de março de 2025

Primavera


 Um frémito desperta

A paz de ossos acomodados –

A Primavera desponta

Como um problema exótico

Que todos os anos, 

Necessita de resolução.

 

Nasce com os sinos,

Explode, quando a placidez da invernia

Se inclina, desgastada,

Apodrecendo.

Tudo se prepara, ansiosamente,

Para receber novo rosto:

Acabou o tempo das ilhas. 


Nuno Rocha Morais

sábado, 8 de março de 2025

 O segredo é uma voz

Igual ao silêncio

 

Talvez na mulher, 

O segredo do mundo.


Nuno Henrique Rocha Morais

sábado, 1 de março de 2025

Aqui se coroa e cumpre

O desejo:

É terra.

Aqui cheguei,

Aqui não verei ninguém mais.

Não espero que alguma vida,

Metáfora de ar,

De novo me tome

E em mim enflore.

Aqui espero, sim,

Morrer para sempre.


                                                                    Nuno Rocha Morais 

sábado, 22 de fevereiro de 2025


Todo o sono ao fundo,

Resumido num ponto irrespirável

De longe, vem a noite

Sedimentar as suas vozes

E todo o pensamento se ateia,

Envenenado de imagens,

Deslumbrado de tristeza incógnita

Que alastra pelo meu nome

E se torna a minha idade,

A minha biografia.

Pela trama da tristeza é que eu penso,

Por aqui passam pesadas,

As pré-históricas horas,

Fossilizadas nesse passado

Em que me consumo.

Que importa o presente

De que, levemente, bebo a morte?

Ah!, e só ver os olhos dela

Seria apagar pegadas rumo ao meu fim.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 16 de fevereiro de 2025


 No sangue a raiz comum com tudo,

Uma página em que todos os ritmos

Se escrevem com a verdura da mesma sintaxe.

Nenhum gesto é abreviado,

A cor das flores não precisa de tradução,

Cai uma sede ferruginosa sobre as espadas,

As espadas já sem chave,

Onde a morte já não pode ser colhida

E a luz dá à luz a sua própria transparência.



Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de fevereiro de 2025


(À maneira de Yorgos Seferis)

 

Éramos tão jovens e o amor tardio:

Não o veríamos, como o não vimos,

Como o não veremos.

A lunação de um anjo 

Atravessou sussurradamente

As nossas marés, os nossos lugares,

Escapou às malhas dos nossos corações.

É verdade, envelhecemos,

E o amor rescende, tão jovem.

Como se faz agora?

Quanto passou deixou uma ferida

E o passar do anjo que não vimos

Cobre-as de sal.

O amor, tão jovem, já nada pode em nós,

Somos incêndios cristalizados.

Tu terás sido o anjo que não vi,

Aqui ficaste, caída, desfolhando-te,

Perpétua na tua efemeridade.

Perdemos tudo.

Pela primeira vez sentimo-nos claramente esculpidos,

Libertos da pedra da carne,

Mas só uma tristeza vil nos esculpiu. 


Nuno Rocha Morais

 (Galeria 2016)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025


México

(Homenagem à pátria de Octavio Paz)


México — 

O sol e a lua sucedem-se

Imolando-se ritmicamente,

Com as suas luzes de sílex,

Em homenagem aos espíritos aztecas,

Cujas vozes ainda se ouvem

Nos murmúrios do milho,

Pirâmides do ouro.


Nas estatuetas de barro

Desponta ainda um coração.

E, nas igrejas cristãs, austeras,

Por entre as sombras silenciosas e respeitosas,

Os ecos dos antigos deuses aztecas

Vagueiam, ainda poderosos.

Nuno Rocha Morais

 (Galeria 2016) 





sábado, 1 de fevereiro de 2025

Tão falsas as palavras
Quando digo “morri” nada se passa

Ou quando digo “amo-te”

Nenhuma festa jorra

Nada se passa senão quando

De facto te amo sem palavras

 

Sou capaz de dizer espadas

Com doçura

Sou capaz de ternura

Com os gestos das pedras

 

São falsas as palavras

Verdadeiras mentiras

E eu tenho o lastro da minha vida

Como todos nas palavras

 

São falsas todas as palavras

Até as palavras que com verdade

Se dizem e reconhecem

Falsas



Nuno Rocha Morais 

domingo, 26 de janeiro de 2025

Litania da libertação




                                                                        "por onde alcançar o azul da terra

                                                                        onde se confundem a chuva e os ausentes"

                                                                                                                        Pablo Neruda


Onde o dia se confunde com o horizonte;

Onde o espelho se confunde com o sangue;

Onde o Inverno se confunde com o sono;

Onde a teia se confunde com a boca;

Onde o vinho se confunde com a explosão;

Onde os pássaros se confundem com a luz;

Aí, nesse lugar, nesse tempo,

Onde o espaço se confunde com o sonho,

E o tempo com um tema exaurido,

Aí, eu não me confundirei comigo,

O ausente. 


Nuno Rocha Morais (Galeria 2016)

domingo, 19 de janeiro de 2025

À minha volta, um excesso de presenças.

Em cada objecto, um elo de memória,

Um rasto de tempo passado 

Guia-me até às bases do silêncio,

Onde uma imagem resiste.

As faces rodam

E tudo em mim se espelha,

Nada se grava.

 

                                                Penso na amnistia da estranheza.


Nuno Rocha Morais 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Definição

É algo que não pode voltar,
Como um rio que passa,

E dura, e jamais volta.

É algo como um sono

Em que o voo se dissolve

E de onde nunca mais se liberta.

É a extensa neve da escuridão,

Da perda, é algo de coisa nenhuma. 


Nuno Henrique Rocha Morais

domingo, 5 de janeiro de 2025


Às vezes, regressar não é bem um regresso
Se já nada ficou do lugar

De onde se partiu.

O regresso pode ser anulado

Pelos olhares que a indiferença apouca,

Pela sombra de coisas que já não existem,

Pela sombria aragem de uma seiva perdida.

Um lugar é um lento fruto de sabor rápido,

Esboroa-se e os seus sedimentos dispersam-se. 


Nuno Rocha Morais

As contracções, A ira de Deus, O sangue da maçã mordida, A serpente enroscada No pescoço que aperta E aperta, A fractura da identidade, A de...