quinta-feira, 10 de setembro de 2020


Amava as histórias de toda a gente,
Porque essa era a verdadeira respiração do mundo.
O terror era a ausência de linguagem,
O uivo dos lobos da serra
Quando andava à lenha
Ou o pai, ofegante e moribundo no quarto,
Com os pulmões soterrados pela mica.
Aos sessenta anos, quis aprender a ler,
Como se só assim pudesse sair da escuridão,
Fugir dos lobos. E, desde então,
Aproveitava todas as oportunidades para escrever.
Eram sobretudo, os envelopes de Natal,
Onde introduzia notas,
Apondo por fora o nome de cada sobrinho,
Numa caligrafia esforçada,
E era claro que, para ela,
Como para nós agora,
Cada um desses nomes manuscritos
Representava uma vitória,
Um afecto que, roubado ou indizível,
Ganhava a mais justa forma.
Aos oitenta anos, um ataque
Paralisou-lhe parcialmente a boca
E com dificuldade articulava consoantes.
A sua fala converteu-se num vocalismo vazio,
Grandes lagos brancos, glaciais, espaço informe,
Som por modelar; ou já sentido puro
Que só a custo podíamos alcançar.

Nuno Rocha Morais
(Poema do Nuno dedicado à Tia Catarina que o ajudou a criar e que hoje faria cem anos)

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