Seria Janeiro e a chuva era tanta
E as gaivotas eram tantas,
Fugidas à procela que se apoderara
Do coração das vagas.
Brilhava o espanto do gato amarelo,
Senhor do telhado à direita,
Ante aquelas criaturas,
Derradeira graça, derradeira leveza.
Seria Janeiro e a chuva era tanta,
Bálsamo sobre a terra,
Apocalipse sobre as cidades.
E tu? Não serias mais do que aparição,
Liberta pela chuva dos grilhões da terra;
Vinda até mim, oferecias-me
A antiga e efémera aliança dos lábios,
A transmigração do sangue.
Havia tantas gaivotas, eram tantas
Que todos os dias eu te falava delas
E algo do seu voo, da sua inquietação,
Da sua desesperada busca,
Se apossava um pouco mais de ti.
Depois – seria Janeiro? – a chuva partiu
E também as gaivotas e também tu
E foi-se o espanto do gato amarelo,
Abatidos ambos num canil.
Mais não me restou do que a submissão
E na minha carne continuou a ecoar
A agonia pestilenta das cidades,
Que vão devorando a terra
Com a aridez do fumo e do vidro calcinado.
Só às vezes me surgem, espectrais, as imagens
Produzidas pelo mundo de uma fábula
Invisível e imperscrutável,
Onde estás tu e as gaivotas e o gato amarelo e a chuva,
Como se só eu tivesse partido.
Nuno Rocha Morais
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