domingo, 22 de janeiro de 2023

Rosto de uma condenada (da Cadeia da Relação do Porto)


De que causas emergem estes olhos,

Desferindo o seu negro a direito,

Ninguém sabe. Nada se sabe do desfecho

Desta mulher de cenho franzido

E cabelo desgrenhado, de número ao peito,

Miúda, tisnada por muitos mais sóis

Que se queimam na agrura.

Este rosto recusa-se a não ter feito nada,

Despreza as expressões destiladas, insípidas,

Como o arrependimento ou a piedade.

Lança-se, irremediável, no poço do seu crime,

Juntando-se à contumácia das luas,

Que preferem perder-se nas águas

À existência insípida na ficção de um céu.

No fundo, a vida dessas damas,

Adereços em casas burguesas,

Entre almofadas, reposteiros, lavores,

Um pouco pálidas, um pouco consumptas,

Não mais do que o necessário ao seu encanto;

Damas canoras, à maneira italiana em voga,

Nas tristezas, histerias e prantos.

No entanto, esta mulher prefere a culpa

De não acreditar no juízo

E muito menos na injustiça,

Essa desordem consoladora.

Se pensa em alguma coisa,

Não pensa nisso.

Por um segmento de instante,

Talvez fosse possível passar os dedos

E sentir o relevo de uma aflição,

Latente e, porém, distante. 

Mas então, logo este rosto duro

Dissipa os dedos:

Imagens vindouras não podem julgar. 


Nuno Rocha Morais

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