quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

31 de Dezembro

 A areia chega-me agora à cintura,

Não me tolhe, nem condena,

Mas está lá, sinto-a.

Há vozes com sede que se abeiram,

Querem beber, mas só tenho sede igual

Para lhes oferecer, ou areia.

A areia é quente, leve, maternal –

Não aquela que os humores vários do vento

Aqui vão depositando, mas o favo

Das que me cobrem há muito.

Às vezes, parece que nas areias

Se anima um instinto de construção,

Mas de que, grão por grão, logo desistem

E aquietam-se

Na arquitectura de apenas

Estarem junto às outras

E aquecem, ao desalento de irmandade

São mais fortes as vozes

Que querem beber, as areias

Que pedem água, jurando

Que a feitiçaria de uma só gota faria em terra,

São mais fortes as vozes, como as areias,

E lamentam-se da construção que não foram,

Coisas por fazer protestando,

Julgando-se incluídas no útero de algum futuro.

 

Nuno Rocha Morais

 

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