Primeiro, o verbo tem de ser
O arame farpado, o comboio
Que estaca no inferno sem círculos,
As portas dos vagões que se abrem,
Os gritos, os olhos que não têm tempo
Entre uma e outra treva.
Depois, o verbo tem de ser
Prisioneiro dentro desse arame farpado,
Sob a vigilância das torres,
Tem de ostentar hematomas,
Os mal contidos ossos como insígnias
A comunhão esquálida
De um mesmo rosto.
O verbo tem de se acautelar
Para não o comerem,
Tem de se deixar abraçar
Por alguém que o confundiu
Com outro alguém, amado ou conhecido,
Que não jaz, mas se dispersou
Em fumo e cinza;
Tem de respirar a fraterna pestilência,
Trabalhar até à exaustão,
Perder os dentes todos ou não chegar nunca
A ter dentes do siso.
Tem de conseguir ser esse fumo e cinza,
O verbo tem de
ter bebido o fel
Da sua própria impotência,
De ter sido reduzido
A um número tatuado na pele
Para, de novo, atravessar o arame farpado,
Tocar a terra
E conseguir que acreditem nele.
O verbo tem de aprender como nunca se esquece,
A boca rebentada pela febre,
O corpo ceifado por tifo, disenteria,
A alma ceifada, mas não destruída
E, depois, sim, destruída.
Nuno Rocha Morais
Já fui a Auschwitz uma vez... hei-de lá voltar,desta vez com a Fátima,espero... e quando o fizermos, vamos levar este poema para o ler lá, em voz alta.
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