sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

(Nuno - Jornalista/poeta)

Porque sou jornalista, sinto-me mais real, a minha escrita tem uma densidade dolorosamente real, é rugosa porque é a verdade, aquilo de que não se pode fugir, mas é preciso enfrentar.
E porque sou jornalista, é-me exigido que não sinta (tanto), que faça as coisas distanciadamente, como um actor, ou melhor, espectador do teatro brechtiano.
Talvez por isto eu escreva cada vez menos versos. Ou talvez por causa do maldito efeito que teve em mim o maldito poema de Yannis Ritsos, “Explicação Necessária”. Nunca nada que eu tenha lido teve tal efeito sobre mim, nem a obra do Pessoa, do Celan, do Larkin, do António Osório, do O´Neill, do Ruy Belo, nenhuma. Todas me motivaram para a escrita. Mas este poema, não. Aniquilou-me, secou em mim todo o desejo de escrever, lamentando amargamente que Ritsos alguma vez o tenha escrito.
Tenho medo daquele poema e devo habituar-me a ele, ao medo que ele me causa, e ao esmagamento.
O pior, e eu sei-o, é que, como boa literatura que é, o texto não se deixará reduzir ao hábito, terá sempre algo novo para me mostrar e maravilhar. E o que eu não quero é a maravilha que incinera tudo o que já escrevi.
Parafrasear o texto não basta, não serve, não me consola. Qualquer esforço, qualquer veleidade de imitação ou torneamento sairá gorada, nunca chegará aos calcanhares do original, deixará sempre aquele vazio de quem não disse nada e nada tem para dizer.

E sei agora claramente o que o Pessoa queria dizer quando afirmava: “....e é vã a obra toda.”

Nuno Rocha Morais
(...da cinza à rocha - notas literárias)

Poema de Yannis Ritsos- explicação necessária
Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.


yannis ritsos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. eugénio de andrade
assírio & alvim
2001


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