“Não lhe restam anos”,
disse o médico,
Sem fingir pesar, num
tom desapaixonado,
Como se falasse de um
problema mecânico,
Do lamentável defeito
de uma engrenagem,
Mas não mais que isso.
Agradeci-lho.
Não me permitiu sequer
esperanças
De pequeno porte, não
vendo em mim
Mais do que o já cadáver,
De milhões de nós numa
tapeçaria.
Não me restam anos,
portanto –
Passei a viver contando
só os dias.
II.
A tapeçaria de um
homem.
Motivos: por exemplo, o
cheiro de pedras quentes,
A sensação de uma sensação
Tão tersa como uma
corda
Que, vibrada,
permitisse agarrar a própria pedra;
O hálito da cal,
O Verão, a leveza de
uma cidade
Que se prepara, de tão
branca,
Para levantar voo na
planura –
Mértola? Vila Viçosa?
Que nó?
Mais motivos: o fio do
que dizem certas vozes,
Que, conduzidas, também
conduzem
À noite de beijos que não
passam,
Não se dissolvem, mas
antes ecoam nas bocas
E dados, se dão
perpetuamente;
Certos perfumes, como o
do limoeiro,
Das ameixas, o odor da
terra
Que sucede, humoso, à
chuva,
Da maresia no nevoeiro,
Do lodo numa ria,
O perfume de mercados
Que começam o dia –
O sabor de nomes
Pargos, percas,
besugos, robalos, ferreiras.
Milhões de nós, um
homem.
Milhões de nós numa
tapeçaria,
As coisas criadas pela
memória das coisas.
III.
A hóstia do incógnito –
Como saber se a tua
alma é cobarde,
Como temperá-la contra
o muito que teme?
Que homem és na extrema
do homem?
Possas tu ser-te leve
no caminho,
Viaja ligeiro –
lembra-te,
Encontra o que puderes
de acalanto
Em ti, à tua volta, no
sereno,
Não leves na boca, na
alma,
Mais do que um salmo,
Não saibas mais do que
ser pequeno.
IV.
Nem um talvez, nem meio
talvez,
Só um fio de talvez,
Que se batia corpo a
corpo
Contra um nem isso –
Às vezes, um grito
entrava na refrega
Dado por aquilo que
ainda não era
O cadáver de serviço.
Nuno Rocha Morais
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