A neve é sentimental vista de uma janela.
A obra em frente foi abandonada,
O estaleiro é apenas povoado,
Por guindastes tristes, mutiladas cruzes, vigas, andaimes
De uma realidade jugulada.
Há só alguns esgares de vento,
As luzes já estão acesas em todas as casas
E uma ou outra mão afasta as cortinas
Para logo desaparecer.
Talvez comente qualquer coisa
Sobre o facto de nevar outra vez.
Não há sinais de corvos, pombas ou pardais
Talvez nenhuma alma caridosa
Se tenha dignado misturar
Um pouco de azeite na água dos bebedouros.
Fazem muita falta os corvos,
É mau agoiro quando desaparecem
Até as aves ditas agoirentas.
As almas gelam também.
Excepto talvez a neve, a dura neve,
Que apenas deixa passar o tempo,
Mas interdita todo o espaço.
Neva e a terra desapareceu,
É escalpelo desta brancura
Que envolve tudo,
Consome tudo, deixando apenas
Um cabelo comprido, uma travessa de cabelo,
Os restos de um vestido.
Neva e o mundo parece tão frágil,
Abandonado, singular.
A neve, dura neve tão feminina,
E o mundo – uma conversa interrompida.
Nuno Rocha Morais
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