domingo, 30 de junho de 2024


 A neve é sentimental vista de uma janela.

A obra em frente foi abandonada,

O estaleiro é apenas povoado,

Por guindastes tristes, mutiladas cruzes, vigas, andaimes

De uma realidade jugulada.

Há só alguns esgares de vento,

As luzes já estão acesas em todas as casas

E uma ou outra mão afasta as cortinas

Para logo desaparecer.

Talvez comente qualquer coisa

Sobre o facto de nevar outra vez.

Não há sinais de corvos, pombas ou pardais

Talvez nenhuma alma caridosa

Se tenha dignado misturar

Um pouco de azeite na água dos bebedouros.

Fazem muita falta os corvos,

É mau agoiro quando desaparecem

Até as aves ditas agoirentas.

As almas gelam também.

Excepto talvez a neve, a dura neve,

Que apenas deixa passar o tempo,

Mas interdita todo o espaço.

Neva e a terra desapareceu,

É escalpelo desta brancura

Que envolve tudo,

Consome tudo, deixando apenas

Um cabelo comprido, uma travessa de cabelo,

Os restos de um vestido.

Neva e o mundo parece tão frágil,

Abandonado, singular.

A neve, dura neve tão feminina,

E o mundo – uma conversa interrompida.


Nuno Rocha Morais

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