sábado, 26 de março de 2022

Pequeno léxico


            A melancolia espalha a sua bruma

Melosa, melómana,

Fica a ouvir as vértebras

De uma mesma palavra.

Ambos dissemos amor,

Mas eram palavras diferentes,

Não aceitavam ser uma pela outra

Apontavam sentidos diversos

E cada uma queria regressar

À sua própria língua

                                        Levando a outra por troféu.

 

                                                    Nuno Rocha Morais



terça-feira, 22 de março de 2022

 


Deixo-me cair. Chove.

A mágoa tenta ser demasiada,

A resignação, voz velha e sábia,

Procura confortar-me

Com todos os exemplos que vai tirando do baú.

As ilusões estouram, o coração pode menos,

Sempre um pouco menos, coberto de goteiras,

É possível que tantas impossibilidades

Acabem por vencer

E façam vingar a sua lei.

Talvez nas veias da tragédia

O sangue seja de farsa chocarreira.

Que, então, tudo se desminta, se deslace,

Que nunca tenhamos merecido

Com lágrimas fundar amor,

Que o ridículo não se apiede de nós.

Uma razão qualquer argumenta

Que um homem também se alimenta de pontapés.

Deixo-me cair, mas, então, ao principio muito longe,

Depois cada vez mais perto,

Com forças maiores e maiores,

Há uma voz que soa límpida

E que pelos caminhos distribui a abundância

Equivoca um “talvez não, talvez não”

Até que em mim há espaço

Para de pé repetir: talvez não, talvez não.

 

Nuno Rocha Morais


quinta-feira, 17 de março de 2022

Ei-lo, o poema, meu velho inimigo

De armas terríveis, porque minhas –

A dor, o que amo, o que não posso ser –

Desferidas em cada verso.

O poema, sim, meu velho inimigo,

Que nunca é uma imagem,

Que nunca cintila

E, ainda assim, me revolve os olhos,

Diz-me ao ouvido os segredos que mais temo,

E o que mais temo são as coisas que amo,

Só essas me podem destruir.

Tudo isto o poema sabe e utiliza,

Meu velho e eficaz inimigo

Que dava forma a tudo o que eu não poderia ser.

Nunca lhe perguntei porquê,

Por que razão ele vem para me odiar –

O poema é uma ferida

Com a qual não há reconciliação,

Insiste, existe, é um inimigo.

 

Nuno Rocha Morais


quarta-feira, 9 de março de 2022

A promessa

 


 

 

 

A luz floresceu ao contrário,

É uma luz errada e podre,

É um vulto débil na minha mão,

E um papel já demasiado rasgado

Para que nele se possa traçar

Alguma enseada do longe.

É uma luz fugaz,

Caminho que guia ao silêncio,

Mas é a luz onde queimo os olhos,

Como se fosse uma folha de promessa,

Como se fosse uma mensagem de terra,

Um odor, uma dor como um remo,

É uma luz num lençol, quase sombra,

Mas que me faz agarrar-me a mim,

Arrastar-me pela curva de mais um dia.

 

Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 4 de março de 2022

Blasfémia


Hoje, a minha solidão

Foi um azulejo terrivelmente branco

A quem o dia ignorou.

A minha solidão foi navegação

No lago onde a hora era excessivamente calma.

Hoje, a minha solidão

Foi o tempo da cinza,

O tempo em que tudo são ecos

De paredes vazias, vazias.

Hoje, até Deus morreu muito.

 

Nuno Rocha Morais

 

 

As searas navegam no vento, Os campos correm, ondulam. Eu sei, este tempo morrerá aqui E os mortos escurecerão a terra. A vida ensina a morr...