terça-feira, 26 de março de 2019

SOLILÓQUIO DE VITORINO NEMÉSIO (in Galeria - pág.64)


Sabes que envelheceste,
Porque o sangue nas tuas veias
Vai irrigando também a morte.
É curioso como um homem que envelhece
Se assemelha à giesta, à urze.
Os seus sonhos são o tropel
De cavalos há muito mortos,
Que ficaram a dormir nas sombras
Que a infância ainda projecta;
O latir de cães companheiros de infância
E que nela ficaram, dormindo ao sol.
Um homem que envelhece
Reúne-se, em certas tardes,
Com parentes desaparecidos,
Retoma hábitos intocados,
Volta atrás em amores ressequidos
E inflecte para palavras
Que terá calado ou perdido.
Um homem que envelhece
Permite-se revisitar todas as vidas
Que poderia ter tido,
Como se divisões vazias de uma casa,
Ou melhor, como se ilhas desertas
De um arquipélago de vidas.
Um homem que envelhece
Pensa “Oxalá o meu Deus seja verdadeiro”
E tu sabes que envelheceste,
Sabes porque nunca o sangue
Te pareceu tão transitório,
Artérias que o levam,
Veias que o não trazem
Contaminado com os venenos de existir.
Sabes que envelheceste
Porque o teu corpo já não se recusa
A ser efémero: resigna-se.

Nuno Rocha Morais

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