domingo, 30 de junho de 2024


 A neve é sentimental vista de uma janela.

A obra em frente foi abandonada,

O estaleiro é apenas povoado,

Por guindastes tristes, mutiladas cruzes, vigas, andaimes

De uma realidade jugulada.

Há só alguns esgares de vento,

As luzes já estão acesas em todas as casas

E uma ou outra mão afasta as cortinas

Para logo desaparecer.

Talvez comente qualquer coisa

Sobre o facto de nevar outra vez.

Não há sinais de corvos, pombas ou pardais

Talvez nenhuma alma caridosa

Se tenha dignado misturar

Um pouco de azeite na água dos bebedouros.

Fazem muita falta os corvos,

É mau agoiro quando desaparecem

Até as aves ditas agoirentas.

As almas gelam também.

Excepto talvez a neve, a dura neve,

Que apenas deixa passar o tempo,

Mas interdita todo o espaço.

Neva e a terra desapareceu,

É escalpelo desta brancura

Que envolve tudo,

Consome tudo, deixando apenas

Um cabelo comprido, uma travessa de cabelo,

Os restos de um vestido.

Neva e o mundo parece tão frágil,

Abandonado, singular.

A neve, dura neve tão feminina,

E o mundo – uma conversa interrompida.


Nuno Rocha Morais

domingo, 23 de junho de 2024


Já saudades de tudo,

Do milagre que as tuas mãos sabiam ser,

Da tua graça que realmente amanhece,

Saudades de ser possível pensar

Na possibilidade das coisas que não vivemos,

Saudades do teu calor no meu casaco

E de um frio que não mais terei,

Saudades de uma chuva que ouvi contigo,

De livros na tua voz,

O sal vagamente lírico de uma tristeza

Que se foi tornando mais obscura,

Que se adensou e não passa.

Saudades de uma cidade,

O mar, o rio e a bruma,

Saudades do teu beijo misturado

Com vinho quente, ou chocolate, ou canela

Saudades do meu nome na tua boca,

O nome que, agora, cansado, de flanco,

Morre algures em ti.


Nuno Rocha Morais
 

domingo, 16 de junho de 2024


Reúno toda a memória

Onde quero que entres 

Sem que eu precise de falar

Ou sequer lembrar:

Há demasiada viagem

Entre a memória e os lábios.



Nuno Rocha Morais

domingo, 9 de junho de 2024

 Os caminhos agarram-se aos meus passos

E eu não deixo que me levem neles.

O esforço para ser feliz

É já uma maneira de se ser feliz.  


Nuno Rocha Morais

domingo, 2 de junho de 2024

Carta para um amigo


 
Meu amigo, venho agradecer-te

            por me deixares

            adâmico, sozinho no mundo

            experimentando a inutilidade

            desse mundo, quando só.

 

Meu amigo, venho agradecer-te

            a dádiva dessa solidão

            que tanto te haverá doído,

            se realmente eras meu amigo.

 

Meu amigo, venho agradecer-te

            o teres criado para mim

            a tua ausência

            que eu bebi e era amarga.

 

Meu amigo, venho agradecer-te

            quanto de mim encontraste

            e me deste, bom ou mau

            certa luz podre, mas também 

            uma fresca e límpida obscuridade.

 

Meu amigo, venho agradecer-te

                                               a gratidão.


Nuno Rocha Morais

  Às vezes, queria traçar o percurso De estar perdido de qualquer saber, De já não nomear nada a partir d...