Até casa, o caminho é uma serpente
Que se alimenta da sua própria substância.
Até lá, é preciso atravessar a fantasmagoria
Dos bastiões e casamatas, fitando com olhos de coruja
Os focos de luz azulada que lhes estão apontados;
É preciso encontrar o espectro que acende o cigarro,
Pigarreia, pede uma indicação e se desvanece,
Os esqueletos de metal dos guindastes,
Como mastodontes num museu de história natural;
É preciso ver cruzar, na distância,
As luzes penadas, desencarnadas, de um comboio,
Ver as chispas torturadas que as suas rodas
Arrancam aos carris;
É preciso sentir a respiração ofegante,
Moribunda, das árvores sob a primeira neve,
Farejando o fim em curso, que as retomará,
Mudado já em princípio iminente;
É preciso ouvir o rumorejar da corrente,
A água que se repete e repete na noite,
Quando os rios da terra são também
Os rios do céu; é preciso ouvir essa água,
O sinal do regresso sem fundo falso,
E então sei que estou em casa.
Nuno Rocha Morais (Últimos Poemas)
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