sábado, 28 de dezembro de 2024

Animais de estimação


 

Pode, com propriedade, dizer-se que nascer

Foi o seu cativeiro, colaram-lhes um nome,

Moldaram-nos como indivíduos

Ou projectaram neles a ilusão

De que havia ali algo de único,

Algo mais do que a mera réplica

Das características de uma espécie

Que se perpetua numa mole indistinta.

Tiveram esses fictícios indivíduos mais sorte 

Do que todos os outros sem nome

Na massa bruta e anónima?

Afectos, se os houve, não contrariaram

A sua natureza mais profunda –

Uma selvajaria instintiva, refractária,

Uma solidão enfim quebrada, vencida,

Mas talvez mais nobre, que é também nossa

E que preterimos em detrimento de alma?

Animais de estimação talvez acabemos todos

Mais cedo ou mais tarde nessa tristeza

Esfuziada, árida morte – adestrada.

Morrerão da morte que lhes inventarmos.

A ferocidade castiça, a inteligência senta-se nas patas traseiras,

Dá saltos mortais, sob o aplauso geral,

Ou bufa, silva, ladra, ruge, agita tentáculos

Ou tenazes, morde, fere e é sempre risível,

Mesmo quando mortal.

 

Animais que, de tão pacíficos,

Nem para se defenderem

Sabem os gestos da violência.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 22 de dezembro de 2024


Eu decidi ir ser feliz com os outros,

Decidi tentar ver neles e eles em mim

Essa criança que chora,

Tenra forma de gente,

Quase ninguém ainda.

Eu decidi que ninguém ficaria 

Na soleira do esquecimento,

Insultado pelo Dezembro que sulca as ruas.

Eu decidi que haveria um Natal maior

Que as árvores e os presépios e os presentes

 E a bondade obrigatória, forçada, engolida.

Eu decidi que o Natal seria um gesto

E não um programa inerte, pendente.

Eu decidi moldar o coração

Num amor para todos

Porque o Gonzaga sabia:

“Eu tenho um coração maior do que o mundo”.

Eu decidi ser fiel à estrela

Sufocada no céu convulsionado

Por tantas outras luzes.

Eu decidi ser fiel e seguir a estrela

Esquecida,

Atraiçoada.


Nuno Rocha Morais 

domingo, 15 de dezembro de 2024

 Aqui chegado, que lugar é este?

O coração das águas corre,

Turbulento, eu vim com a lama

Até encontrar detença aqui,

Na margem tranquila.

Cheguei tão longe – que lugar é este?

São os teus olhos,

Não posso voltar para trás.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

domingo, 8 de dezembro de 2024


Não se diluíram em elísios ou infernos,

Permaneceram fiéis, os meus mortos,

Aqui gravitam, na densidade das suas almas

Superior ao facto de terem sido corpos

Vislumbrando-os em fissuras do tempo,

Distracções de que logo se recompõe.

Vislumbro-os a horas neutras

No trânsito entre a vida e a morte,

Átonas de valores simbólicos.

Vislumbro-os regressando

Apressados aos retratos.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022) 

domingo, 1 de dezembro de 2024




Rodeiam-me coisas antigas –

Candelabros, móveis, livros –

Leves no interior da sua presença.

Nenhum pó subjuga

A sua autoridade.

À sua volta, irradia a força

De outras atmosferas

E há uma súbita corrente de ares,

Passagem de outras vozes, luzes,

Que bruxuleiam um instante

E logo pesam, dissipando a ilusão.

Rodeiam-me coisas antigas

E sei-me rodeado de vidas;

Rodeiam-me coisas antigas,

Plácidas, serenas, 

Detidas na enseada de si mesmas.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022) 

A minha voz pode esquecer-te, Mas não o meu silêncio. De sofrer por ti fiz a minha casa – O escárnio e o absurdo Passam sempre, por mais que...