sábado, 26 de outubro de 2024


De algum modo, desconfiar da música

Que parece oferecer as suas alcovas

Para depor cuidados ou para um esquecimento fácil,

Rodeando-nos com os seus paraísos artificiais,

A ondulação de bosques mágicos,

As suas paredes fabulosas e invisíveis,

O acalanto dos seus reinos inalcançáveis,

As suas huris e águas perfumadas.

Não aceitar a música que não traga

As suas próprias bacantes,

Por exemplo, alastrando num piano,

Cada vez mais selvagem,

Subvertendo a ordem de um piano,

Dilacerando e enlouquecendo escalas,

Sopro de turbação em todas as geometrias,

Harmonia dissidente,

Não aceitar nenhuma música

Que não aceite primeiro

Desmembrar-se, despedaçar-se,

Sem se comprazer na sua própria forma,

Para dar lugar no interior de si

A uma música mais perfeita –

E assim sucessivamente,

Eclodindo na sua pira funerária.

 

Nuno Rocha  Morais


sábado, 19 de outubro de 2024

Esquecimento

 

Juro que lá estavas,

Mas pela fotografia sente-se uma aragem

Que toca e desperta um vazio.

Pensei que para sempre

A fotografia te prendera,

Assim como os meus olhos,

Mas não.

Agora percebo,

É outono, tanto longe

Se derramou pelos ventos,

Pela terra,

E há passos que ao longe

Para sempre se perdem.

Mas estavas lá,

Juro-o por todo o esquecimento. 


Nuno Rocha Morais

sábado, 12 de outubro de 2024


 Também eu sei muita coisa

Que sedimenta na idade e na voz,

Coisas inúteis de que o tempo se desinteressa,

Saber do passado convocado

Nessas páginas de um sono,

Uma inércia.

Vou aprendendo tanta coisa inútil,

Vou abrindo gaveta após gaveta

E esses baús ciosamente velados

Por pó e treva.

Afinal eu só sei aprender,

Eu só sei saber,

Afinal tudo o que faço é para saber,

Os dias sopram para serem sabidos,

Tudo em si é uma ciência mínima,

Murmura, inapreensível de tão mínima,

Mas saber afinal.

Quanto mais aprendo desta vida,

Inutilidades, minúcias, pormenores,

Quanto mais aprendo a viver

Mais morto me sei.

A minha vida é aprender a morte.


Nuno Rocha Morais

domingo, 6 de outubro de 2024

 Não creio que viesse tentar a história,

Mas ia mudar-se, a vizinha britânica,

E precisava de uma chave inglesa,

Mas eu só tinha um alicate –

Ainda assim, podíamos tentar.

Ofereci os meus préstimos,

Desci as escadas em passo de trovador

E ela no seu passo em cabelo.

O alicate não servia, as porcas 

Obstinaram-se e não cederam –

Vim-me embora, não sei se ambos

Sentimos um futuro a desviar-se lentamente.

Quando fechei a porta, não houve sequer era uma vez.


Nuno Rocha Morais

Poemas dos Dias (2022)

A minha voz pode esquecer-te, Mas não o meu silêncio. De sofrer por ti fiz a minha casa – O escárnio e o absurdo Passam sempre, por mais que...