Um mito, veja bem. Um mito.
É esta a crueldade que usam comigo.
Eu, este corpo que se afunda
Na sua decrepitude, sou um mito.
E obrigam-me a assistir, vezes sem conta,
A estas imagens de mim, jovem,
E perguntam-me se tenho saudade
Da minha juventude, que, sei-o agora,
Era já um crepúsculo – magnífico,
Diziam-me, mas já um crepúsculo.
E assim sou um mito e o tempo deve estar a rir-se muito,
Porque um mito é a máscara menos confortável
Para se morrer.
Repare bem, quero ser eu, só eu,
A escrever o meu obituário,
A fazer coincidir o meu canto de cisne,
Como soe dizer-se, com a notícia da minha morte.
Veja bem, fui bela e, agora, sou o oposto dela,
Sou, de ambos os lados do espelho,
A face e o reflexo, que só em aparência
Não coincidem, sou a fábula de um corpo
E a sua moralidade, que não é nenhuma,
Só uma lei natural.
Mas a minha beleza, dizem-me, não era natural,
Era inumana, era eterna.
Estavam enganados e aqui estou, a prova,
Ainda viva, e não sei se estou feliz
Por poder demonstrar-lhes que estavam enganados,
Mas aqui estou, prisioneira de um mito
Que eu própria desminto, embora tarde de mais.
Sou um mito pelo que fui.
Mas só agora sou real.
Não me reconhecem como essa jovem
Ou, então, como a degradação dela,
Como exemplo dessa lepra inelutável,
Dessa justiça tão justamente injusta
Que é o tempo, que nos cobra
O facto de o termos vivido.
Pois veja bem, sou a minha própria cilada,
Sou como o vento a sibilar na folhagem
Para saber que existe,
Para ser sombra nos caminhos.
Sou um mito a desmoronar-se num corpo,
Mas só agora sou real.
Mas só agora sou real.
Nuno Rocha Morais (Galeria)
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