domingo, 27 de novembro de 2016

Eu decidi que haveria um Natal maior
Que as árvores e os presépios e os presentes
E a bondade obrigatória, forçada, engolida.
Eu decidi que o Natal seria um gesto
E não um programa inerte, pendente.
Eu decidi moldar o coração
Num amor para todos
Porque o Gonzaga sabia:
“Eu tenho um coração maior que o mundo.”
Eu decidi ser fiel à estrela
Sufocada no céu convulsionado
Por tantas outras luzes
Eu decidi ser fiel e seguir a estrela
Esquecida
Atraiçoada.



          Nuno Rocha Morais 

domingo, 20 de novembro de 2016

Folha por folha, sem repetição,
Em cada anel somado ao tronco.
Temem tanto a primavera como o Outono –
Não temem na sua tolerância tenaz,
Na sua constância consciente e desconhecida.
Agora, são um animatógrafo 
De folhas, de pássaros, de ventos menores.
Mudam, mudaram, voltarão a mudar,
Sem nunca se perderem.
Será possível que os outros nos desconheçam tanto
Que nos comecemos a desconhecer nós próprios?
Inteiramente conscientes
Na morte e na vida
                                  Nuno Rocha Morais

domingo, 13 de novembro de 2016


Deveria dizer-te que os meus braços
São também eles os remos partidos,
O coração desmembrado pela confusão.

             
Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Paula

Manhã, manhãzinha vem pela estrada, vermelha, sorridente, cantarolando. Chega com a manhã.
Na aldeia, ninguém sabe de onde veio a Paula, não se lhe conhece família, marido, pais, filhos, ninguém. Existe por si. Desde sempre: ninguém a criou. Ou é criada todos os dias, nasce com a manhã.
Da Paula só se sabe que é louca. Assim dizem os sãos. E ela quer ser louca. Procura a loucura no vinho. A loucura, dizem, nasce do encontro entre o vinho e o sangue da Paula. Passa algumas horas por dia na taberna. Os homens acham-lhe graça. Pagam-lhe copos, dão-lhe garrafões. Sabem que embriagada a Paula tira a roupa. Riem-se e, depois, pia, catolicamente, dizem “Pobre alma”. E a Paula ri-se com eles, como se longe de si mesma.
Mora no meio do monte, num lugar a que chamam “O Buraco”, uma velha casa meio arruinada, abandonada até pela memória, pelas sombras do passado.
A Paula repovoou um pequeno quarto: um retrato do Papa, um colchão, os garrafões, os gatos que ela ama, a sua loucura. A Paula chama-lhe agora o Solar do Inca. Fala dos diamantes que só ela conhece. Fala da gente que a visita. “Hoje, tenho visitas”.aperalta-se nos seus trapos, depois de se ter lavado na fonte, nua, com as beatas puríssimas a rosnarem entre dentes – “Porca”. A Paula não liga. Faz a sua vida a que ninguém chama vida. Só miséria. Mas ela, louca, parece feliz. Longe de todos. Só perto dos seus sonhos, da sua imaginação, da sua loucura, dos seus gatos. A Paula é feliz.
Mal a manhã acende o tempo, a Paula desce a estrada. Cantarola com o chilrear infernal da passarada, o cantar dos galos, um boi que muge. A Paula começa a ser o tempo. Quando a vêem na estrada, sabem que é a hora x. Certa, a Paula faz o seu caminho para lado algum, azafamada a procurar Áfricas, ouros e ir a festas.

Mas uma manhã, a Paula não desceu a estrada. E três dias passaram. Às gentes da aldeia, a manhã parecia incompleta, faltava-lhes alguma coisa. Alguns homens e mulheres foram ao Buraco. A Paula estava lá, no colchão, entre os seus gatos. Lábios adormecidos em pedra. Lá longe, alguém cantarolava.

     Nuno Rocha Morais

As searas navegam no vento, Os campos correm, ondulam. Eu sei, este tempo morrerá aqui E os mortos escurecerão a terra. A vida ensina a morr...