domingo, 26 de maio de 2024

 À mesa

 

Teria de chegar o momento

Em que nos sentaríamos à mesa

E neste ritual reconheceríamos

A tua morte sentada connosco,

Entre nós.

Já não serás a última a sentar-te

Para jantar neste cubo de noite acesa

Navegando no interior do tempo

Para o Ano Novo,

Já não erguerás, chorosa,

A taça à saúde e vida dos teus,

Pelo menos não aqui.

Estamos silenciosos, à tua espera,

E contra nós vem a memória,

Funciona sempre a memória,

Corre a buscar-te à cozinha.

Cada um há-de lembrar-te

Do ângulo em que sempre se sentava

Em relação a ti –

A lembrança é tópica –

Da sua posição na ordem

De ter servido o prato...

Foste a primeira a partir,

A chegar como mensageira

E o universo desta mesa,

Orquestrado pelo mesmo sangue,

Há-de cindir-se em mortes

Até que à mesa

Só a morte seja conviva.


Nuno Rocha Morais

domingo, 19 de maio de 2024

Enquanto dura o teu perfume –

A silhueta sem objecto,

Os contornos da tua ausência,

Como se um simples procurar-te

Fosse nefasto, tanto como olhar para trás –

Enquanto dura o teu perfume,

Vou sentar-me contigo,

Deixar o tempo espiralar-se

Para não ser já tarde ou cedo,

Sentir como a memória forma,

Num silêncio artífice,

As suas grutas insidiosas,

As suas nuvens demoradas.

Vou sentar-me contigo,

Sem medo, a ouvir o sorvedouro.


Nuno Rocha Morais


sábado, 11 de maio de 2024

Falo contigo, ou antes,
Como da tua mão

E, se não olho, são

Penas os meus dedos

E asas os braços

Que desaprenderam

Toda a leveza.

Falo contigo

À procura de sementes,

De grão em solo duro,

Aspereza avara,

Rio-me porque engana

O rebrilho de berloques

Que levo e nada valem

Para a minha fome.

É triste, enreda-me o frio

Quando falo contigo,

Enredou-me o frio

Nesse ninho ao telefone.


Nuno Rocha Morais 

sábado, 4 de maio de 2024


Onde estais versos magníficos,
Cantos de fachada belíssima,

Naves de silêncio imponente,

Palavras que ultrapassam o tempo,

Onde estais, que apenas vejo

Versos apodrecidos, que nem vão

Além da página que facilmente os doma?

Onde o vento, onde os sinos,

Onde as janelas que, todas somadas,

Fariam o poema sublime

Que nem o esquecimento de uma Eternidade inteira

O poderia dissolver em mudez?

Onde o verso, barco acordado e invencível,

Que só vejo o momento seco de um cardo?

Onde a beleza, sendo a única que diviso

A que resta de um sonho em ruínas?

Inexoravelmente, o meu verso

Se divide no espaço

E retorna ao peso do silêncio,

Aprisionado no centro de uma idade.


Nuno Rocha Morais 

À minha volta, um excesso de presenças. Em cada objecto, um elo de memória, Um rasto de tempo passado  Guia-me até às bases do silêncio, Ond...