quarta-feira, 29 de abril de 2020


O verso é o meu elemento,
Quero dizer, nele encontro
As palavras com que aprendo
A desconhecer-me,
A entender um pouco mais
Aquilo que sou pelo que não sou.
O verso é o meu elemento,
A mesma medida
De paraíso e inferno
Procuro-o, nas suas lunações
Transportam-me de mim a mim,
O verso é o meu elemento
E isto quer dizer apenas isto:
Procuro-o para me afogar
Porque o que em mim morre
Procura o verso para viver.

Nuno Rocha Morais

segunda-feira, 27 de abril de 2020



Não me busques nos versos,
Que deles não há retorno.
Neles me perdi e há sempre alguém que volta,
Mas quem?, quem?


Nuno Rocha Morais

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Apólogo dialogal

Eu, de coração rechaçado, seguia
Talvez já para fora da espécie.
Foi então que o encontrei.
Chamei-o, precisava que desse por mim,
Confiasse. Estacou.
Era um desses gatos urbanos
Que, a horas moribundas
Procurava refeição.
Encontrando uma espécie de generosidade
No que outros desprezaram.
Fitava-me e eu fui-me aproximando,
Ele deixou e toquei-lhe.
Arqueou o corpo amarelo e esguio,
Ergueu a cabeça contra a minha mão
Até se cansar do meu afecto.
Subiu, veloz, as escadas do beco,
De regresso à sua noite,
Fugindo à moldura,
De qualquer lição, moralidade, exemplo.

Nuno Rocha Morais

quarta-feira, 22 de abril de 2020


As três moças trazem um sol torrado,
Falam com sílabas de coco e palmeira
E ar verde e aves coloridas.
As três moças falam com dentes brancos,
Falam como se andassem nuas
Em busca da terra grávida de água.
Gesticulam como se dançassem
Diante da madrugada.

                                                   Nuno Rocha Morais

sábado, 18 de abril de 2020

Cumpri. Não que tenha cumprido
Quanta luz havia para acender;
Não que tudo tenha sido destinado,
Mas cumpri quanto a minha visão
Me deixou cumprir.
Por isso, tudo cumpri.


Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Ah!

Há séculos que carregamos
Os chibos dos deuses,
Anafados, moleirões.
Esperamos o teólogo
Que nos venha livrar
Destas varizes da alma
E os mande todos à merda!
                       (Obrigado, O’Neill)


Nuno Rocha Morais

domingo, 12 de abril de 2020



Como um touro, a música investe
Contra os corpos e arrebata-os.
Sobre o palco, espirais brancas
Transmutam em gesto a música.
E nos nossos sentidos tensos, envoltos
Na penumbra que nem respira,
Comovida, temendo quebrar
O encanto da música que a cerca
E a aprofunda;
Em nós, nos sentidos tensos,
Também tornados palco,
Vemos a música dançando,
A própria música, felina,
A música que é febre sobre a memória,
A memória esse cristalizado
Movimento perpétuo,
Encontra a música inefável
Que agora habita a matéria.
Assim entra a música em nós,
Só aí pode emudecer
E nunca na crepuscular exaustão do som.
A música canta em nós,
Ainda que muda, domando, alcandorada,
Os ritmos do silêncio,
Vive, muda,
Encontra o cisne que canta para morrer,
Para que nada da ave,
Da música da ave
Fique prisioneira do corpo,
E a outros se conceda.

Nuno Rocha Morais

quinta-feira, 9 de abril de 2020

 
Agora o pesadelo é real,
Uma agonia sem alarme.
Sentam-se em bancos de jardim,
Sofrem com os joanetes e os enfartes,
Usam de uma cortesia que parece coçada
Como os seus chapéus
E falam de guerras há muito esquecidas.
Estão em todas as fotografias
Que não foram tiradas.
Quando essas guerras acabaram
Expirado o alivio,
Tudo se tornou mais banal,
Como se o brilho da vida, à beira do abismo,
Tivesse perdido intensidade
Entre explosões, ruínas, pó,
O odor excitante de gasolina e cordite,
Esse tempo acabou e a eternidade
Está prestes a começar,
Num tédio sem bússola.
Estão a sós com a alma
Em plena sublevação.
É perigoso sentir a alma agitar-se muito,
A confundir-se com as entranhas
Procurar a superfície,
Farejar a respiração, à espreita,
À espera do sinal desde sempre combinado.
A escuridão de nenhuma voz humana.

Nuno Rocha Morais (poemas sociais)

terça-feira, 7 de abril de 2020


Espantou-se ao sentir a dor
Que a sua carne ainda podia.
Porque perseverava assim?
O sangue prosseguia, perseguindo
Todos os confins do seu corpo,
Congregava-se em torno dos pregos,
Sem brotar. A dor, só a dor
Falava no seu corpo,
Mais alto, cada vez mais alto,
A dor que a mãe devia ter sentido
Quando ele estava para chegar.
E então gritou: “Eli, Eli...”
A mãe estava perto, ainda mortal,
Sem desviar os olhos da agonia.
Até ele terá vacilado
E, descrendo por um instante,
Perdeu-se do Pai.
E disse: “Tenho sede.”
E o Pai deu-lhe a provar o arrependimento
Numa esponja embebida em fel.
Depois, reuniram-se, mas não puderam ser o mesmo.

Nuno Rocha Morais


“Nunca como agora a poesia que tento escrever esteve tão perto da prece.” Nuno Rocha Morais

sábado, 4 de abril de 2020

Sintoma: Cerveja estranhamente aple e sem gosto
Problema: Copo vazio
Acção: Arranjar alguém que pague outra cerveja.

S: Cerveja sem gosto, frente da camisa molhada
P: Boca não aberta ou copo aplicado a parte errada do rosto
A: Recolher ao WC, treinar ao espelho.

S: Pés frios e molhados
P: Posição do copo em ângulo errado
A: Rodar o copo de forma a que a extremidade aberta aponte para o tecto.

S: Chão desfocado
P: Está a olhar através do fundo do copo vazio
A: Arranjar alguém que pague outra cerveja.

S: Chão em movimento
P: Está a ser deslocado
A: Descobrir se o levam para outro bar; em caso negativo, grite que está a ser raptado.

S: Parede em frente cheia de luzes florescentes
P: Caiu para trás
A: Ate-se ao balcão.

S: Boca cheia de beatas
P: Caiu para a frente
A: Ver acima.

S: Sala estranhamente escura
P: Bar fechado
A: Confirmar endereço de casa junto do empregado do bar.

Nuno Rocha Morais


quarta-feira, 1 de abril de 2020

Estar cansado do cinismo asmático,
Das perscrutações que adivinham
O fim de tudo ao princípio de tudo.
Estou cansado da clarividência sardónica,
Complacente, que nos reza esse credo
De que a vida vai ser-nos fatal,
Que o será sem dúvida.
Mas, se o optimismo é também
Uma forma de estupidez,
Talvez nos reste a equanimidade,
Uma via intermédia
Onde possamos esperar a nossa alma,
Antes de a escorraçarmos
Com a força de todas as fatalidades?

Nuno Rocha Morais

Deram-nos uma liberdade de cravos Desenterrada dos mais sombrios tempos – Crónica da memória – Liberdade pisada, amarfanhada Nas profundezas...